sábado, 19 de dezembro de 2015

RE-ENCONTRO.



Quando todos os passageiros ainda estavam sentados na sala do pré-embarque, o Grunho já se tinha posicionado junto à cancela. Estava visivelmente agitado e o facto de ali ser proíbido fumar contribuia de forma lapidar para a sua impaciência. Ficou com todas as pastilhas elásticas que o Besuntas tinha na carrinha mas isso não o iria salvar do negredo com início agendado para as 15:47, mas os comprimidos que roubou à mãe, sim. Retirou do bolso o guardanapo que os continha e engoliu a seco dois deles. Deitou um olhar ao arranjo floral. Tal como suspeitara não foi boa jogada ter comprado as rosas tão cedo. Passou as costas da mão que tinha livre pela testa ao sentir um fio de suor atravessar-lhe a testa. Não era a primeira vez que viajava de avião, teve também Londres como destino, o seu vôo inaugural. Foi durante uma semana, a convite daquela estudante portuguesa de visita a Cambridge para tentar encontrar casa antes do início do ano lectivo; da segunda vez foi para ir com o Brocas e o Jaime ao districto da Rua Vermelha que por acaso ficava em Amesterdão e na terceira e última, para ir à Suíça mais o Besuntas ver o jogo dos quartos-finais de Portugal contra a Alemanha. Talvez fosse dos nervos, da contracção ou rigidez dos músculos, mas o Grunho que por vezes se via tão aflito com o inchaço de veias inflamadas e doridas na parte interior do recto, lá começou a sentir pulsar a velha puta da hemorróida que de vez em quando espreitava – Olha, olha, olha…isto é que é ter sorte! Já vi que vamos ter festa... – Normalmente, a preocupação do Grunho com este mal crónico mas passageiro tinha menos a ver com o incómodo causado no fundo das costas do que com o receio de que alguma maluca ao enfiar-lhe o dedo no cú acalcasse a feijoca e que daí resultasse aquela sensação de o fazer ver as estrelas em pleno dia. Para começar, teimou em não se sentar no lugar respectivo enquanto não lhe trouxessem não uma mas duas almofadas. Apesar dos constantes pedidos da hospedeira para dar passagem aos demais passageiros, recusava-se a sentar – Uma porra! Querem o quê? Eu fui operado ao fundilho das costas, dona! Se não passarem para aqui as almofadas eu vou de pé o tempo todo e desde já aviso que sou o gajo mais chato que podia ter entrado neste avião aqui! – calava-se durante alguns segundos quando incomodado pelos outros passageiros que lhe pediam licença e se esforçavam para conseguir passar no espaço livre que o Grunho ocupava no corredor. - Já não bastava estar nervoso e doente…e vem isto agora! Vá lá menina, duas almofadas, já estou a ganhar bolor! - Respirou fundo, fechou os olhos e começou a cantar de surdina um fadinho para se acalmar e ajudar a passar o tempo – Duas lágrimas de orvalho caíram nas minhas mãos…Quando te afaguei o rosto… Pobre de mim pouco valho…P´ra te acudir na desgraça…P´ra te valer no desgosto…- O Grunho parou de cantar para tossir, inspirou longamente, revirou os olhos para o chão e enrolou as pernas uma na outra. Todo ele, dos pés à cabeça, era a imagem precisa do total desalento e abandono. Assim apoiado nos cotovelos pousados no encosto para a cabeça do assento, o triste molhe de rosas nas mãos e a balbuciar um fado vadio, tinha feito as delícias de algum fotógrafo que procurasse capa para a Life ou a Metropolitan. – Este avião não descola enquanto eu não tiver as minhas al-mo-fa-das! - vociferou no mesmo tom de voz rouca mas desta vez em implícita ameaça crescente. Quando já estava decidido a começar a rezar o pai-nosso como truque infalível para sobressaltar a tripulação, uma hospedeira saida do compartimento da primeira classe veio a passo de corrida trazer-lhe as almofadas. – Aqui tem, Senhor, faça o favor de se sentar no seu lugar. – A este ponto, os passageiros, que seguiam a cena com muita preocupação antevendo a necessidade de ser chamada a polícia puderam respirar de alívio e voltaram a sentar-se, outros porém de certeza que dali em diante iriam suspeitar que aquele era o perfil do tipo que tenta abrir a porta do avião a 11.000 metros de altitude. – Finalmente! Eu já ia começar a rezar! Já ia começar a rezar! - O Grunho instalou-se no lado da janela esticando as pernas o máximo que pode e ignorando os procedimentos de segurança. Já desde essa manhã que ele experimentava um nível crescendo de flatulência mas a apoteose chegou quando observava por baixo de si o Cristo-Rei – Ui…guarda aí Manel, só para ti!…Quando não se paga a renda, expulsa-se o inquilino! Ainda bem que não tenho aqui vizinhos à perna! - disse, olhando para o seu lado esquerdo. Ao fim de alguns minutos refastelado que nem um lorde no seu assento extra almofadado, o efeito dos calmantes acabou por produzir o seu efeito. O Grunho cruzou os braços ao nível do peito e fechou os olhos preparando-se para arrochar no mínimo durante boa parte da viagem. – Qual é a bebida que o Senhor vai desejar tomar? – Ele abriu de imediato os olhos – Depende - Junto à comissária de bordo estava o carrinho com as chaleiras, as cafeteiras, as metades de sanduíches embaladas a celofane – Temos café, chá, sumo, água… - Pode ser Sumol de uva, tem cá? Ou água, mas só se for água da Escócia, para me lavar o estômago…está a perceber? Ó dona, acha que sim, eu cá precisava era de beber uma dez cervejas para matar esta sede, mas como nisso você não me vai ajudar, ora adeus! – e voltou a fechar os olhos. - A Hospedeira franziu a testa e retirou-se em silêncio, passando ao próximo passageiro – Fodasse, não sei se a fodia ou se me batia - disse para ele, sem mexer as pálpebras dos olhos.

A Tiradentes foi dar com o Grunho, mãos nos bolsos, lingua de fora a fazer fintas rápidas a um par de irmãos gémeos desesperados por lhe sacarem a bola perto do meeting point. Antes de chegar a ele, dois polícias avisaram-no que entre muitas coisas que não eram permitidas nas instalações do aeroporto, uma delas era jogar à bola. O Grunho, que de inglês só fala o da praia, não precisou de fazer um grande esforço para compreender o que lhe diziam e depois de encolher os ombros para os miúdos, passou-lhes a bola rematando com a testa. – "Welcome To London"! - A Tiradentes, que não era baixa, de saltos muito altos ficava quase da altura do Grunho, apresentava-se muito elegantemente vestida com um fato escuro, uma camisa com um grande decote a fechar em bico, carteira Chanel, o cabelo bem apanhado atrás – Epá, vai ao olho! O Grunho deu uns passos para trás como que para obter a melhor panorâmica, tirou os óculos escuros e assobiou. - Abençoados pais que construiram este monumento…E que monumento, a catedral mais linda de Londres! – Obrigada. Fizeste uma boa viagem? Apetece-te alguma coisa? Oh...pare… - o Grunho já estava a cheirar-lhe o pescoço e a passar em movimentos circulares a ponta da língua. – Então não me apetece? Já me deixou cá c´uma quentura! Mas pronto, além das brincadeiras que tenho em mente, uma bica curtinha com bagaço cheio também já ia! - O Grunho que nunca gosta de fazer menos do que impressionar, lembrou-se das flores murchas que entretanto já tinha atirado para o lixo e para compensar a falta, estreitou-a pela cintura – sabe, não gosto de aparecer de mãos a abanar e por isso tinha-lhe comprado em Lisboa um belo, belíssimo, ramalhete de flores mas tenho a informar que, coitadas, lamentavelmente já morreram para a vida...Peço-lhe que perdoe este escravo - A Tiradentes, que já começava a ficar algo excitada com o contacto do Grunho, afastou-se dele com alguma atrapalhação que soube disfarçar.

Foram passear pela zona de Portobello Road onde se embrenharam na incontornável feira que àquele dia da semana decorria. O Grunho, que já mostrava com orgulho a sua renovadíssima guarnição dental, sorria e flanava por entre as bancas com o mesmo à-vontade com que costuma andar pelo bairro, cigarro pendurado no beiço, aquela mania dos casacos e dos blazers, mão no bolso a gingar o fadistão. A cada par de metros percorridos o Grunho estacava a apreciar as mulheres de alto a baixo, como se estivesse na feira de gado. Isto sempre indiferente à Tiradentes que até achava graça ao seu comportamento infantil, abanando a cabeça como uma mãe paciente faz às traquinices do filho pequeno. Numa banca vê a reprodução de um quadro e diz que tem o original em casa, que o homem anda a querer enganar as pessoas e que quando chegar a Lisboa se vender o quadro num antiquário provavelmente fica rico. Quando topou com uma venda de artigos de merchandising correu a procurar a t-shirt da selecção portuguesa de futebol, e embora não tendo encontrado nenhuma, a visão de uma sweatshirt com a cara do Cristiano Ronaldo deixa-o louco de alegria e impele-o a puxar da carteira – Fodasse! Não me lembrei que aqui não aceitam euros…Já da outra vez foi a mesma merda! Alguém havia de dizer a estes gajos que estão na Europa e que é essa a razão da moeda da Europa se chamar “euro”, ou acham que é por acaso? – A Tiradentes entretanto mostrava-lhe outras que estavam expostas em cabides, apertadas umas contra as outras – Olha aqui, Elegantly WastedSportfuckerBed BoySerial Fucker… Todas elas dizem bem contigo! Escolhe a que quiseres, vá! – O Grunho, que não entendia o significado das frases ficou a olhar muito fixo com os braços cruzados à cintura com um ar muito inteligente. Gostar ele gostava era das t-shirts com figuras estampadas, as últimas da fila. Pegou numa com um lutador de luta livre mexicana, de máscara e fato amarelos, num fundo de várias cores garridas supostamente resultantes de uma explosão e em letras copázio: ¡ Mucho Machismo! – Boa, leva essa, e para mim levo aquela, agora só tenho que encontrar uns óculos iguais aos teus! – Riu-se. A Tiradentes tinha achado graça ao cabeludo David Hasselhoff em Knight Rider mas como o Grunho, que já tinha feito a sua escolha, reiniciara distraídamente o seu desfile, limitou-se a pagar as camisas sem esperar pelo troco.

À porta do British Museum juntou-se a um grupo de punks barulhentos junto de quem se peidou e arrotou muito, bebeu vinho branco pela garrafa e fez festas aos cães, que estavam notavelmente mais asseados que os donos. A Tiradentes registou o momento com as muitas fotografias que tirou com uma Polaroid. Em pleno Hyde Park, os dois pararam para se sentar num dos bancos a observar os irrequietos esquilos, - Estou tão feliz que tenhas vindo…Pensei que não viesses a tempo de eu terminar o doutoramento. Aliás, para ser justa eu nem acreditava que pensasses verdadeiramente em vir. Por vezes sinto-me tão terrivelmente só, aqui… - sorriu e tapou com as palmas das mãos o rosto oval. Parecia cansada. - Se eu alguma vez pensei estar aqui em Londres com uma pessoa que ainda não conheço bem! E logo um tipo como tu, tão…diferente! E conhecemo-nos há pouco tempo! Eu sou aquela que passa a vida a sonhar com o homem perfeito e talvez por isso também já não o procuro. – o Grunho que de olhos fechados passava deliciado os dedos pelos cabelos do rabo-de-cavalo da Tiradentes saiu da sua hipnose e num gesto vagaroso interrompe-a encostando um dedo indicador nos lábios muito vermelhos – Bom, para começar, o homem perfeito não existe, mas existo eu, o que é quase a mesma coisa! Bem vistas as coisas não sou um homem, sou um homem-animal. Espécies como eu deviam de ser estudadas. Depois, nada disso que me conta é verdade. Conheci-a toda a vida, já me tinha aparecido em sonhos, sabe? O resto, essa coisa de eu ser um gajo simples é verdade, mas não sou tão alberto assim e prova disso mesmo é eu estar aqui, já não perco tempo com gajas, só com mulheres, entende-me nisto? - pousando a mão no joelho dele - mas diz-me, tu tens este efeito sobre todas as mulheres? Como é possível isto? Porque eu nunca fiz nada semelhante! Aliás, nunca precisei, porque acho que me acostumei a que sejam os homens a bajular-me. Sei que é terrível dizer isto - o Grunho, ouvindo tudo o que ela lhe dizia com um sorrisozinho de orgulho interrogou-se acerca do significado do verbo “bajular”, mas como a palavra lhe soava distinta, não deu a entender a sua dúvida. Balançava agora um palito ao canto da boca, as mãos a aquecer nos bolsos - Oh “dótora” mas eu compreendo-a muito bem! Então, basta olhar para mim, eu sou tão lindo que às vezes quando me vejo ao espelho até me excito a mim próprio, palavra de honra! Eu nem sequer falo muito disso porque soa-me um bocado a bichanice, mas pronto, a realidade é que eu não sou bom, sou duas vezes isso, sou bombom! – Ela continuou, sem ligar à patacoada narcisista do Grunho – No fundo, sei que tenho ciúmes dessa tua felicidade ingénua. Comigo é tudo tão complicado! E depois tu tens esse sorriso triste e olhos traquinas, essa tua expressão tão distante, ar de quem se está a cagar para isto tudo. Mas por detrás dessa rudeza, és um homem delicado. As mulheres que consigam decifrar isso vão ficar estarrecidas mas também vão ser umas desgraçadas! As tuas maneiras, tudo... és assim entre o patético e o poético, o camelo e o caramelo, cheio de singularidades...por exemplo, esse cigarro atrás da orelha nunca vi em ninguém! - o Grunho ajeitou-o de imediato - deixe lá estar a beata na orelha que eu não tenho onde deixar o cigarro direito...olha agora! - A Tiradentes prosseguia, lançada na leitura psicológica ao Grunho - E os teus preconceitos, meu Deus! Não gostas que as mulheres fumem, que se pintem, que andem de mini-saia...Apesar de teres a minha idade pensas como o meu avô que tem quase 90 anos! – O Grunho coçou a base da nuca - Ah é? Fixe, tenho de ir jogar uma cartada com o teu avô então! Gramo de falar com os velhotes! - ela riu - Olha que surpresa! - O Grunho começava a sentir a cabeça dele demasiado esmiuçada para o seu gosto e sentiu-se na obrigação de cortar a conversa que desembocara naquele parlapié sentimental bem típico de toda a gaja em todos os países do mundo, que ele já conhecia de trás para a frente; O Grunho levou o cigarro solitário à boca e falou qualquer coisa imperceptível sem o retirar da boca. - Vamos andando antes que comece outra vez a chover? Nunca vi sítio assim, ainda é pior do que o Porto ou o carago! Lembrei-me agora, da outra vez que cá estive não vi aquela torre em ferro com a forma de pila! Ou se calhar estou a fazer confusão...?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

JUNTO AO RIO, NAS COLUNAS.

Batia o sol do meio-dia. Grupos de pessoas, sobretudo turistas, repousavam os ossos e a vista junto do Tejo, uns sentados nos bancos de pedra, outros deitados no chão de mármore do Cais das Colunas. O Grunho e o Besuntas estavam deitados, cada um no seu degrau das escadas de acesso à rampa. Todos os que lá estavam eram forçados a ouvir o “Boa noite Solidão” que Fernando Maurício cantava em plenos pulmões de dentro do rádio a pilhas que o Grunho colocara entre os dois. Dentro da sua única camisa de seda toda desabotoada e calças arrepanhadas até aos joelhos, o Grunho espreitava por cima dos Rayban aviator originais - trazidos da base das Lages pelo Amaral, o vizinho militar - cabeça pousada na mochila de viagem, o cabelo em desalinho, queixo pousado no peito, muito concentrado no manuseamento do telemóvel cuja sofisticação continuava em grande parte um mistério por decifrar. O Besuntas, de olhos fechados, escarafunchava pacientemente o nariz à cata de burriés que ia enrolando na ponta dos dedos e fazia disparar aqueles que voavam, colocava ainda numa frincha que achara no degrau, aqueles que vinham húmidos e que se agarravam aos dedos.– Ainda dava tempo para ir ao peep-show, o que é que me dizes? – pergunta o Besuntas, sem deixar de abrir os olhos nem de fazer a meticulosa operação de desobstrução nasal - Hã? Ir agora daqui ao Rossio a butes, tás tosco ou quê? Não me posso atrasar! – Opá, mas se ainda temos que ir buscar a carrinha lá ao bairro! Aproveitávamos a ida…ou estás com medo de chegar atrasado lá à terra dos camones? – O vôo para Londres estava marcado para dali a duas horas. O Grunho tinha a Dentista à sua espera para uns dias em que trocaria o Tejo pelo Tamisa para dar as suas voltas românticas com a Doutora. – Fodasse, agora lá porque a gaja te amanhou a dentuça ela faz de ti gato sapato? Tás a ficar fraquinho! Vais casar com a gaja ou quê? – o Grunho pousou o telemóvel sobre a barriga e ajustou os óculos. – Casar? Eu cá é conhecê-las, amá-las e deixá-las! Casar...Que azar! – Um grupo de raparigas, claramente oriundas do norte da Europa vieram sentar-se nas escadas, olhando com curiosidade os dois marmanjos estirados a ouvir fado. Cena pitoresca e de folquelore regional, terão certamente pensado – Então quer dizer que para a semana não vais bulir, não é, seu moinas? O nosso patrão vai-se passar contigo! Temos já três trabalhos marcados e tu vais-te por nas putas…Já agora, não te esqueceste de falar com o Adolfo para te substituir pois não? - o Grunho endireitou-se e deteve-se a olhar para as estrangeiras que por sinal tinham escolhido aquele poiso para almoçar – ´Tá tudo tratadinho…E também já disse ao teu pai para me descontar cinco dias de férias, além disso eu trabalho, trabalho, trabalho e o dinheiro está no caralho! Se estivesse em casa a ganhar dinheiro sem fazer nenhum é que eu estava bem…- O Grunho que se tinha posto a estudar as cuecas, umas de fio dental e outras em renda que despontavam da alvura dos traseiros próximos, sentindo o súbito impulso artístico sacou do iPhone para tirar umas fotos, sem se ralar mínimamente em ser chamado à atenção. Mandou um caldo na testa do amigo, despertando-o da letargia. Juntaram as cabeças para verem as imagens no ecrã do telemóvel. – Olha lá, mano… não parece mesmo uma fisga? E olha que por acaso não tenho este modelito na minha colecção…que categoria...- deslizou com o dedo para outra fotografia – esta aqui deve ser daquelas que quando tiram as cuecas elas andam sozinhas. Até os pelinhos ficam colados à langonha…E esta aqui, ó! Ai…porque é que o meu pai não me fez gaja?! Era só abrir as pernas e facturar! Queres ver para contares como é que foi? Então toma nota – o Grunho fez sinal para chamar a atenção de uma das raparigas – Psst, psst! – a que estava de costas voltou-se no exacto momento em que enfiava um donut quase inteiro pelas goelas abaixo – I love you à bruta! Irra, que tu casa mal de cara! Mas uma burra com um chapéu na cabeça marcha também! - O Besuntas começou a rir que nem um maluquinho e voltou a deitar-se ao comprido, com os braços cruzados atrás da cabeça. – Gosto mais das tuas fotografias e dos teus filmes...- As raparigas olhavam de soslaio com um misto de desconfiança, vergonha e interesse, impressionadas talvez, por aquele exemplo de beleza viril alfacinha. – ´Tás com pouca sorte, filha. Mas, se ficares cá mais uns dias eu ainda regresso a tempo de tratar de ti! Vou-te compensar pela demora, e quando eu voltasse ainda ias comer com mais apetite, que eu tenho aqui para te dar a vitamina que tu precisas! – O Besuntas rematou – Vês? A sério que não te percebo, levas peixe para o mar...Aqui com tanto mulherio e vais-te mandar para Inglaterra só porque a “dótora” mudou-te as favolas! Ainda se tivesses aí algum dente de ouro um gajo ainda percebia… – O Grunho começou a colocar cada botão na sua casa – Ouve lá, a aparência é importante, se tiveres pinta e tratares bem de ti elas acreditam em tudo o que tu lhes disseres! E também conta a maneira como tu falas com elas, se dás atenção ao que te dizem, interessares-te, pá, até a farpela que tu vestes é importante, isto não é só chegar e dizer aqui estou, aqui me tens! – O Besuntas deu-se por vencido - Tens cá uma converseta, meu, vai lá vai – Há que ser fino, há que ser fino…E o dente de ouro vem já a seguir, isso é uma sardinha que já está a assar! Agora vamos embora senão fecha! – o Grunho levantou-se, embolsou o telemóvel e o rádio que ainda tocava fado. Pegou no pequeno arranjo de flores amarelas e vermelhas que repousava ao seu lado. Foi-se agachar perto da deusa nórdica com cuecas de atilho e aproximou-lhe uma rosa que tinha retirado ao conjunto. A rapariga ficou mais vermelha que um Ferrari – Thank you very much – disse ela. O Grunho, calado, sorriu muito ao de leve, fazendo apenas com a mão um pequeno movimento palaciano em modo de despedida e uma piscadela de olhos antes de, em saída triunfante, começar a andar, sob uma salva de palmas e assobios das amigas da contemplada. – Vá lá, vamos ao peep-show, caralho! Ainda dá tempo! – pediu o insensível Besuntas quase arruinando aquele momento.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

DENTES DE MARFIM.



O dia amanhecera solarengo e a prometer temperaturas um pouco mais quentes do que aquelas a que Novembro vinha habituando. O corpo do Grunho, habitualmente dado àquela dormência agradável que se experimenta na fase do pós-sono, tinha reagido cedo aos primeiros sinais de claridade. Encontrava-se em casa da Paz, a vizinha, a amiga de infância, a colega de turma, a primeira das suas namoradas e aquela que continuava a sentir até hoje uma paixão verdadeiramente acelapada por ele. Nos últimos tempos, ao ver o Grunho desesperado por falta de emprego, chegava a tentar oferecer-lhe praticamente todo o dinheiro de uma noite mas que o Grunho recusou sempre, por nunca se querer aproveitar. Mesmo rabanceiro, chulice daquela, da autêntica, era coisa que ele não gostava nem queria para ele, apesar das propostas tentadoras de muitas raparigas que gostariam de trabalhar para si, de contar com a sua protecção e talvez até amor. É certo que o Grunho tinha nascido com uma natural inclinação para a preguiça, mas o seu orgulho varonil e a adoracão que tinha por mulheres jamais o permitiriam enveredar pelo vil proxenetismo, isto apesar da opinião contrária dos seus amigos e conhecidos mais viciosos. Na ideia da Paz ela era a sua mulher e ele era o homem dela. O Grunho só por pena e não por vaidade deixava-a pensar que era assim, pois se a pobre rapariga parecia que pairava quando estava ao pé de si com tanto orgulho e felicidade misturados. Quando se pôs a pé foi logo fumar, todo nu, para a janela do quarto e por lá se deixou estar debruçado na janela de rés-do-chão com as duas portadas escancaradas, tossindo e coçando-se. Ainda tinha ficado a ver a Paz desaparecer no fim da rua e ficou só a contemplar o vai-vém das pessoas que áquela hora passam, a maioria em direcção ao trabalho, embalado na ressonância de cada nota proveniente da rua até formar um conjunto de sons que misturados uns com os outros se ia ampliando até se tornarem indistinguiveis. Deste marasmo o Grunho foi trazido de volta pelo Fusca, sempre apressado e a falar sozinho, parou e começou a gesticular tentando sobrepor a voz fininha à do elétrico que passava – ´Tás a ouvir? Abre os olhos camano, já é dia! – o Grunho sorridente, esticou o braço para dar “cinco” ao outro. – Orientas aí um cigarrinho ou não? Mas tu agoras passas aqui a vida? – perguntou cá de baixo, pousando os sacos cheios de hortaliça que trazia – Olha o Fusquinha…Não te preocupes com isso, que aqui no ninho do amor é que eu estou bem! Ontem fui para a cama às quatro da tarde mas não foi para dormir… - o Grunho esticou um cigarro ao amigo e chegou-lhe o lume do isqueiro – Fodasse pá, que até as putas te dão baldas! Eu é que não tenho essa sorte! A mim ficam-me caras como a merda! – O Grunho sorriu - Sabes, puto, não é fadista quem quer mas sim quem nasceu fadista! E queres saber outra, olha, quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré! – E começou a rir muito satisfeiro com os gracejos. O moço de recados a fumar furiosamente o seu cigarro fez primeiro sinal que sim com a cabeça e a seguir fez sinal que não – Pois, pá, quem pode, pode, quem não pode fica a ver!…E conta lá então, já andas a bulir? – O Grunho, abrindo muito os braços a espreguiçar-se – Já…Trabalho com o Besuntas na firma do pai dele. Mas não é sempre, é quando aparece! – Eu sei, andas lá mais eles nas mudanças… Boa, pá, boa... Olha, dá cumprimentos meus lá à tua mãe, pá! - E voltando a pegar nos sacões, desapareceu, retomando a sua habitual velocidade de ponta. O Grunho continuou apoiado no peitoril da janela. A rua da Paz não distava muito de uma escola privada e daquele ponto privilegiado o Grunho costumava entreter-se a provocar os grupos de adolescentes que muitas vezes também se deixavam impressionar por ele. No passeio do outro lado da estrada passaram duas que já vinham aos cochichos. A mais descarada, olhando para o Grunho, falou propositadamente mais alto para que ele ouvisse – Ai…até dói! – o Grunho, muito lesto respondeu – Dói nada, filha! Vem cá que eu não te aleijo, já dizia o poeta Aleixo! Vem que eu ainda não tomei o pequeno-almoço… Ai isso que vocês têm entre as pernas!ui...são os joelhos, não é? Pois, são bonitos! – uma outra atrás, mais alta que as outras, olhos fitos no chão, abraçada aos livros – Bom dia, pãozinho…comia-te sem manteiga e tudo, sabes disso não é? E essas mamocas redondinhas e durinhas também…Isso só lá vai à dentada! Espera, espera… não vás ainda, desculpa, não queria dizer isso, deixa-me tocar-te no coração, mia riccaddona, dá-me um xôxo vá lá! – As próximas quatro sorriam ao ouvi-lo, porém não se atreveram a dirigir-lhe o olhar – Ó mãe dá-me água!…Que bando de passarinhas, este! Até fico paneleiro dos olhos! Venham cá que à dúzia é mais barato! – o estado de deleite do Grunho só foi interrompido pela passagem do Peças no sentido contrário, que disse entredentes – Bom dia. Como agora já trabalhas, vê lá se me pagas os 30 paus que me deves - O Grunho, que até ali tinha estado de braços cruzados e com muito boa disposição, empertigou-se e levantou o tom enrouquecido da sua voz - Ouve lá ó cabeça de boi, eu não te paguei sempre o que devia? Quando receber a surda eu dou-te o guito, qual é o problema? Tu também deves ter nascido de uma punheta, de certeza! Caralho…isso, isso, vai lá pela sombra que a merda ao sol derrete,´tas a ouvir, mano? E escarrou sonoramente para a rua antes de voltar para dentro do quarto - ...é que agora fiquei cá c´uma vontade de descansar o cotovelo na tua testa, meu! – berrou ainda, assomando de súbito à janela, visivelmente transtornado, na direcção do outro, que por sinal já se tinha pisgado. – Opá…Tenho é de ir tomar café, antes que mande uma trolitada em alguém e ainda vá preso por massacre! – Deitou fora o cigarro inacabado e recolheu-se.


O Grunho tinha a última consulta dali por duas horas. Era na clínica da dentista que ele tinha engatado no Verão, uma ricaça que gostava de o mimar, e por isso, material a que o Grunho se tinha agarrado com unhas e os seus agora renovados dentes, pois segundo o próprio, gajas assim não surgem fácilmente no mercado. Saiu de casa da Paz vestido por Armani, calçado por Dolce & Gabanna e cachecol Burberry all made in feira do relógio, para ir engraxar os sapatos ao adro de S. Domingos. – Ah, os sapatos engraxados fazem maravilhas! – Pôs-se de pé a mirar os sapatos que pôs a rodar sobre os calcanhares - Fique lá com o troco Sr. Julião que eu hoje ´tou cheio d´a pressa! – Deu um salto ali às Portas de Santo Antão para ir à tasca do Acácio buscar tabaco e comer o pastel de bacalhau retardado. Saiu de lá meia hora depois, por conta das bazófias trocadas com os outros e mais três ginjas atiradas abaixo, despesa da casa. Com um palito nos dentes, ajeitou o cachené e ainda a alisar a espessa amálgama de fios pretos na cabeça, lá seguiu viagem. Em cada montra e por cada carro por onde passava o Grunho parava e revia a bonita dentição, completa e branca como marfim. Há alguns anos que a falta de dentes era o único senão que o desfeava quando ria, e isso embora não o atormentasse nem tãopouco lhe impedisse as gargalhadas alarves, era coisa séria e preocupava-o, afinal, ele sabia-o bem, ainda era um traço de rapaz e não queria igualar-se aos outros fadistas de má pinta com quem se dava só à pala da cremalheira desbaratada. Normalmente só está assim de noite, mas naquele momento, sentia-se francamente bem disposto, em forma, animado e muito positivo. Um rei em Lisboa. Antes de descer a escadaria do metro olhou para o seu castelo e inspirou a fumaça das castanhas assadas frente à Casa da Sorte. Hoje era a vez dele recompensar a Tiradentes.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O FADO DO GRUNHO.

Fui de viela em viela 
Numa delas, dei com ela 
E quedei-me enfeitiçado... 
Sob a luz dum candeeiro, 
S'tava ali o fado inteiro, 
Pois toda ela era fado.

Alfredo Marceneiro



Naquele dia as coisas definitivamente não correram bem ao Grunho. Por ter andado na moinice toda a noite de sexta-feira deitou-se com o pifo e dez horas depois acordou mal disposto. Antes de sair de casa disparado ainda gritou com a mãe deixando a pobre mulher num pranto que se ouvia da rua. De vestir o blusão de pele estalada ainda se lembrou mas o mesmo não aconteceu com os cigarros. Estacou no Beco do Belo a revistar os bolsos mas além da magra carteira só encontrou o pente e o corta-unhas. Afinal até o telemóvel tinha ficado no quarto. Não ia voltar a casa. Se bem que já estivesse arrependido pelos seus maus modos era insuportável deparar-se com a cena da Madalena arrependida que a sua mãe tantas e tantas vezes já protagonizara. Arregaçou as mangas do casaco até ao cotovelo e ainda que agoniado desceu resoluto a calçada até à Rua do Jardim do Tabaco, no seu habitual gingar de pernas desengonçado. Já era quase horas de jantar e como à noite tinha de ir cantar o fado à Toca do Coelho encaminhou-se sem pressa para lá. Haviam de lhe arranjar uma pinga para beber e mais um pão com chouriço, que naturalmente não ia cantar de estômago encolhido.

Na cozinha, já com a boina que o restaurante lhe emprestava e que fazia as delícias dos turistas estrangeiros para tirar selfies, inclinou e bebeu de um só trago meia taça de vinho para aclarar a garganta. Deu os primeiros lamirés com o olhar concentrado nos traseiros das cozinheiras enquanto fazia desaparecer a colher de sopa dentro da boca. O chefe de mesa veio chamá-lo para entrar na sala e as mulheres ainda levaram um raspanete por estarem a olhar para um dos fadistas por detrás do ombro em vez de se despacharem a empratar o bacalhau. Na sala pouco iluminada cantou três fados acompanhado à viola mas durante a pausa uma simples discussão com os guitarristas a ver com o tom do último tema levou à questão da métrica do fado alexandrino, em como era interpretado o tema original, e, sem saber bem como nem porquê, vieram à baila os fados de Amália Rodrigues, talvez o único ódio irracional do Grunho, em matéria de fado. Nas mesas, alguém ao ouvir-lhes pronunciar o nome da grande diva do fado começou a pedir que ele cantasse algum tema amaliano. A este ponto, vendo o Grunho cada vez mais enervado e a já a discutir com os próprios clientes em tom de voz cada vez mais ameaçador, o Sr. Coelho, que adivinhava o desastre iminente, pediu entre sorrisos nervosos e umas palmadinhas nos ombros que ele fosse dar uma volta, que para esta noite já havia fadistas em número suficiente e até puxou de uma nota que enfiou no bolso das calças do Grunho. Este, voltava à carga, brandindo com os braços entre gritos de que se é homem é evidente que não vai cantar fados de mulher e depois os seus fatais comentários depreciativos em relação à Senhora Dona Amália Rodrigues determinaram a confusão geral de cadeiras arrastadas, tombadas, e arremessadas, vidros de copos partidos e muita louça no chão, resultado da força conjunta dos empregados da casa e alguns clientes galifões já entornados que o Grunho rapidamente atingia a murros, pontapés e cabeçadas para desespero dos donos e pânico dos turistas - maioritariamente espanhóis - que ali se encontravam. O resultado foi que ainda não era meia-noite e a debandada de clientes tinha sido geral, um prejuízo calamitoso para o patrão que, a somar à destruição da sala, a maioria do consumo daqueles jantares ainda não tinha sido paga. Para o irascível Grunho era menos uma casa de fado daquelas onde ainda lhe era concedida a hipótese de cantar e assim tirar um arrego para para o tabaco e outro para dar à mãe, fora as gorgetas, o jantar oferecido e as camones que ao fim da noite sempre fisgava. Antes de sair pegou no velho blusão e passou a toda a mecha por entre dois bófias que corriam para o local de cacetete na mão abrindo caminho por entre as pessoas que circulavam nos dois sentidos da estreitíssima viela. O Grunho foi-se sentar no chão entre dois carros estacionados, mãos na cabeça, olhos vermelhos alagados em lágrimas. Uma rapariga tinha vindo atrás de si desde o restaurante. Era ainda mais alta que ele, com um vestido preto comprido e um lenço vermelho na cabeça e sapatos da mesma cor. Por pouco não apanhou com o escarro de sangue que o Grunho atirou para o empedrado no momento em que ela se agachou à frente dele. - Olá...olha, tu estás bem? Deixa-me ver – o Grunho levantou a cabeça mantendo os cotovelos sobre os joelhos. Escorria-lhe um fio de sangue por um dos cantos da boca. Ainda ofegante, e mesmo se quisesse, sem poder falar, fitou-a e seguiu com curiosidade o seu gesto ao retirar da bolsa uns lenços de papel que carregou durante alguns segundos contra os lábios dele - Jeitoso, tu cantas lindamente mas tens mau feitio… - ele inspirou profundamente, e já com a respiração quase normalizada, endireitou-se – Obrigado, não me dói nada. É que ´tou a ficar queimado, pá. Qualquer dia acabam-se os biscates do fado e fico agarrado ao pau, é o que é! A sua graça, qual é? - A rapariga, levantou-se, - Chamo-me Mónica. Mas olha lá, tu não podes ser só fadista, não tens outra profissão, um trabalho? – o Grunho encolheu os ombros - Tenho mais ou menos. Às vezes sim, outras vezes não… Por acaso agora trabalho a fazer mudanças - Mónica olhou rapidamente o grande relógio de pulso dela - Levanta-te rapaz, devias ir beber um bocado de água, anda. – Água? Isso mata, caralho… - o Grunho também se levantou sem não deixar de olhar directamente para o rosto oval, de feições levemente orientais de Mónica. O telemóvel dela começou a tocar - As minhas amigas, devem estar à minha procura. Estávamos todas no restaurante - O Grunho juntou as palmas das mãos em gesto de clemência - Oh, não te vás já daqui, mocita… Não me deixes sozinho que eu estou a precisar de companhia e sofro de solidão. Vamos então beber um copo? – Meteu ao bolso as ganfias e confirmou a presença da nota – Vamos?… - Ela pareceu durante alguns segundos algo contrariada mas logo começou a digitar uma mensagem de texto, ao mesmo tempo que sorria.


Passaram por uma loja de conveniência onde compraram uma pack de meia dúzia de cerveja em lata e a seguir foram caminhar ao acaso. Muitas foram as investidas do Grunho para alcançar com os seus os lábios finos de Mónica que sempre virava a cara para o lado. Apesar das negas ele não a largou e abraçou-a pela parte de dentro do casaco quando ela se queixou do frio. Ao dar com os ossos no Cais do Sodré notaram o quanto se tinham distanciado do ponto de partida. Passava das três da manhã. Áquela hora ou apanhavam taxi para ir a alguma discoteca, ou alugavam quarto ou então separavam-se ali mesmo. – Apesar de seres um bocadinho…hum, bruto, és um gandim simpático…Gostei de te conhecer e olha, se aceitares, arranjo-te um restaurante onde possas ir sempre cantar fado. Os meus pais têm um, amanhã falo com eles. – O Grunho, manifestamente alegre, deu uma série de grandes assobios que rasgaram o silêncio da noite – Ah, eu não sou só bonito, também sou sortudo! – e de seguida agarrando-a com as mãos na face para que não fugisse, beijou-a. Mónica fechou os olhos e desta vez não fugiu nem resistiu. – Não vais ter que cantar Amália Rodrigues, se não quiseres – riu com vontade. Um taxi que ia a passar abrandou ao sinal dela. Abriu a porta – O teu número de telemóvel…? – o Grunho retirou da carteira uma pequena folha dobrada e entregou-lha – Toma. Nunca decorei o número mas acho que é o 91696969…se não for passa a ser. Agora toca-te para dentro do carro, vá, deixa-me só, com a minha dor! – Mónica pegou no pedaço de papel e entrou no táxi sem fechar a porta. Deslizou para o outro lado. O Grunho de um só pulo voou para dento da viatura. 

























sábado, 31 de outubro de 2015

FADISTA, VADIO.

AND IF YOU HAVE FIVE SECONDS TO SPARE 
THEN I´LL TELL YOU THE STORY OF MY LIFE... 

"Half Person" The Smiths



Nada mais excitante para um homem do que receber uma mensagem de número de telefone desconhecido a dizer simplesmente “Olá”. Esta situação quando se repete por mais por mais do que três vezes seguidas em uma semana deixa de ser encarada como mero engano e passa a ser determinação. Para o Grunho significava que alguma gaja se andava a entreter à sua custa e balançava entre devolver a chamada e esperar que ela se desse a conhecer. Não era dele esperar, mas como duvidava que fosse algum engate antigo e como não o tinha associado à sua lista de contactos, hesitava. Estava consciente de que corria o risco de ela desistir de enviar mensagens se não tomasse uma atitude rápida, que o timing nestas coisas é de importância capital. Era neste vai-vem de possibilidades que o Grunho cogitava já de pau enrijecido. Pousou o telemóvel e aproveitou a mão livre para aumentar o volume do pequeno rádio a pilhas sintonizado na Rádio Amália. De cigarro quebrado sobre uma das orelhas, voltou-se a sentar nas escadas mal recostado ao corrimão ferrugento. Tinha aos seus pés um saco com latas de bebidas e de conservas e um género de esparguete de fios de norte, atacadores e cordas vulgares. Em seu redor, um púlpito de miúdos demasiado aligeirados para aquele fim de tarde outonal pareciam estar a assistir ao primeiro passo do Homem na Lua. Observavam com as cabeças coladas umas às dos outros a construção do seu walkie-talkie artesanal. De camisola com mangas arregaçadas até aos cotovelos o Grunho ia despachando a empreitada, entregando a cada par de rapazes o seu novo dispositivo que de imediato desaparecia em barulhenta algazarra. – Chavalos, isto já tá a ficar frio, pá! Bazem lá daqui que eu vou p´ra casa! Já aprenderam como se faz esta merda agora levem isto daqui que eu não quero lixo nas escadas, ouviram? - Levantou-se, embolsou o rádio sem o desligar e com todo o cuidado para não o deixar escorregar, espreitou o novíssimo iPhone cor de ouro, enfiado numa peúga de algodão enquanto não se decide a ir ver de uma capa em condições para o telemóvel. Decidiu-se a telefonar. Era ela. Tinha mudado de número. 


Conhecera a arquitecta de Braga quando viajava à pendura no 28 e por sorte topou o romeno a deitar-lhe a mão à bolsa enquanto toda sorridente ela se debruçava à janela para alcançar com a máquina o melhor ângulo da Sé. Saltou antes do eléctrico parar e fez uma espera ao ladrão. Revistou-lhe os bolsos e foi deitando para o chão tudo o que lhe encontrou. De seguida girou à volta do homem e sem que este tivesse hipótese de se debater começou a arrastá-lo entre gritos desesperados de aflição em romeno, português e inglês, muitos deles dirigidos à própria polícia, à qual implorava ajuda. O Grunho, sempre em silêncio e sem demonstrar qualquer emoção ou esforço físico, continuou a galgar os degraus que conduziam às proximidades do castelo e ia tão determinado em virá-lo de cabeça para baixo do alto das muralhas que só à vista do brilho das cancelas se lembrou que a entrada no castelo é paga vai já a caminho de dez anos. A mulher, que depois de recuperar os seus bens começara a correr atrás do Grunho para lhe agradecer o gesto, acabava de chegar até junto dos dois, com o sangue a colorir-lhe o rosto, tremendo e de todo em todo assustada com o desfecho das intenções justiceiras do Grunho. Este, de súbito, mudara o trajecto em direcção ao antigo mictório onde arrumou com o ladrão depois de disparar uma repetição de murros e pontapés que cobriram o outro da cabeças aos pés. – Já te tinha avisado uma vêz, camarada! Agora vais fazer mais uma viagem até à esquadra e ´tás cheio de sorte em não teres ido aterrar à Rua Augusta! – e já pegava o outro pelos colarinhos da camisa quando ela lhe segurou os pulsos e insistiu que deixasse ali mesmo o homem, que ele já tinha tinha sido castigado o suficiente e se o entregasse à polícia seria necessário uma queixa formal dela, coisa que não estava disposta a fazer. Perante a sua insistência, o Grunho largou o corpo inerte que se foi enrolar em posição fetal, de olhos marejados de lágrimas e a largar gemidos de voz enrouquecida. – Este animal cansou-me bem… - Limpou rapidamente com as mangas as gotas de suor que lhe escorriam da testa enquanto endireitava as costas para tentar recuperar o fôlego – Obrigado – disse ela, enquanto o afastava daquele local, puxando-o por um braço e começando a atravessar a multidão que se tinha juntado para assistir - muito obrigado por ter recuperado a minha carteira, o dinheiro, os documentos… Não lhe apetece um pouco de água? 


Marcaram encontro para essa mesma noite no Bairro Alto onde foram dar a um pequeno bar iluminado a velas decorativas que passava músicas do caribe. Experiente dançarino, embora nada acostumado às danças sul-americanas, o Grunho improvisava ora acelerando, ora abrandando drásticamente o ritmo, o que juntamente com as suas chalaças e palavrões fazia a nova amiga contorcer-se de riso. Quando vieram para a rua fumar, ela mandou um pequeno murro no ombro musculado do Grunho – Sabes porque é que eu hoje não quis apresentar queixa na polícia? – Opá – disse o Grunho, encostando-se todo à parede do bar e cruzando as longas pernas - é que nem me fales mais desse bicho que bem arrependido estou de não o ter enforcado com o cinto que… - Pssiu! – tapou-lhe a boca com a palma da mão – Eu não quis perder mais tempo. Só pensei em sair dali contigo o mais rapidamente possível. Ter-te comigo o resto da manhã, da tarde, da noite…Conhecer-te era urgente. Por algum motivo sociológico, talvez. Fazes-me lembrar uma história do Virgílio Ferreira, um conto chamado Fado Corrido, ou coisa assim, se não me atraiçoa a memória…que falava dum tipo como tu, fadista e boémio, que também morava aqui para as tuas bandas, mas olha, essa personagem acabou morta numa luta de facas! Tu és um bocado maluco não és? – O Grunho riu e disse, - Não sou maluco nada. As pessoas põem-me é maluco, todos os dias, a toda a hora, caralho. Umas mais, outras menos, mas toda a gente me põe doido. Detesto as pessoas, pá! Mas tu não me pões maluco, babe… tu o que me pões é variado da tola! – começando a beijá-la primeiro no pescoço, maxilar, queixo, até chegar aos lábios. – E quanto às naifadas, olha-me aqui – Puxou a camisa de riscas para cima e mostrou uma costura esbranquiçada um pouco acima do umbigo e voltando as costas uma outra, mais fina, na zona lombar. – Olha para ti... não sei como é que eu estou agora, contigo, aqui neste local. Claro que és giríssimo, mas nada a ver com o meu tipo de homem, pareces mais um matador espanhol do antigamente ou aquele género de marinheiro chunga saído directamente dos meus pesadelos. Mas confesso-te, hoje a seguir ao jantar levaste-me à certa com a tua versão fadista da “Detalhes” – O Grunho sorriu e largando-a para procurar outro cigarro – Opá… Eu queria mesmo era que gostasses de mim, porque até dei cabo da minha imagem ao pé daqueles dois guitarristas! Eu cá só canto fado vadio, ´tás a ver? – e foi fado o que tu cantaste, meu querido vadio… - disse ela abraçando-o por trás das costas. – Tu, sem sequer teres noção disso, dás-me as mil e uma noites todas de uma só vez! Não consigo explicar e nem sei se quero, sou franca! 


No último dia, ao despedirem-se prometeram novas visitas, a primeira das quais pela parte do Grunho, a Braga. Palavras e promessas de circunstância, medidas e pesadas sempre pela mesma bitola, tanta, tanta vêz, ao longo dos anos. Que era muita pena ela não viver em Lisboa, ao pé dele, sim não se esqueceria de dar uso ao lindíssimo telemóvel novo que ela lhe tinha oferecido, claro, da próxima vêz nem pensar em hostels, que ele nem sequer sairia do apartamento dela, sobretudo do interior da sua cama de onde a partir da qual lhe cantaria de novo a tal música do Roberto Carlos... Ao último aviso o Grunho beijou-lhe a mão e ela desapareceu no comboio deixando-o sozinho na estação vazia. Quando chegou à rua, sentiu o frio, o Tejo e a tristeza mordiscarem-lhe os ossos. Olhou fixamente para o telemóvel dourado. Arrumou-o com uma delicadeza extrema num bolso de trás das calças e aproveitou a mesma mão para levar um cigarro à boca. Não tinha isqueiro. Afastou-se como quem se afasta da morte, meneando a cabeça.