terça-feira, 12 de julho de 2016

INFORMAÇÕES.

Depois de um fim-de-semana bem preenchido na companhia da Dona, em que se vestiram integralmente de branco o tempo todo, onde o momento alto foi quando deixaram Tróia numa lancha para ir a uma festa exclusiva ao ar livre numa praia de Setúbal, onde também jogaram ténis no resort e adormeceram no jacuzzi do duplex com os copos de champanhe afundados na água depois de observarem os trilhões de estrelas que pairavam no céu. O Grunho vinha a conduzir o Jaguar verde-seco pela ponte Vasco da Gama, cansado e aborrecido o suficiente para continuar seguindo pela faixa da direita e um pouco nauseado pela inclinação dos candeeiros em série. Desesperado por não ter conseguido sintonizar a Radio Amália, acabou por desligar o auto-rádio e se pudesse também teria feito o mesmo com os ouvidos pouco tolerantes para com os irritantes avisos que o GPS ditava. Desceu na totalidade o vidrocdo seu lado. A Dona falava quase ininterruptamente desde que saíram da margem sul. - Contei-lhe sobre o parvalhão do meu marido ter comprado o apartamento sem ao menos reparar na linha do contracto onde está escrito que não é possível alugá-lo? - deu mais um gole na garrafa de vinho tinto que trouxe do jantar, - aquele cretino…portanto, o que isto significa? é que nunca vou ganhar dinheiro nos meses em que a casa ficar vazia, é isso que significa! Há coisas que só vistas e não contadas. - Como que desperto pelo vento que lhe entrava pela janela alvoraçando-lhe os cabelos, o Grunho foi abandonando o torpor pensativo que o tinha envolvido e começou a ultrapassar os poucos carros que áquela hora da noite faziam a longa travessia sobre o estuário do Sado. Começou a cantar um fado mais porque sabia ser essa a única forma de calar a mulher ao seu lado do que para seu próprio entretenimento. Pensava no Besuntas. Para combinar alguma coisa com ele uma vez que também ficou sem telemóvel no assalto, antes de sair tratou de encontrar pelas informações o número do Café do Adolfo, fazendo o próprio ir ter com o Besuntas para dizer-lhe a hora de tomarem juntos o pequeno-almoço. Era preciso fazer de polícia, ficar a saber de tudo o que se havia passado, quem poderiam ser os bandidos, se ele os conhecia, se era alguém do bairro e por todos os meios tentarem juntos encontrar uma pista que os levasse até ao ninho deles.

A Dona deixou-o, contrariada, em frente à Sé Catedral. Sentia-se entorpecida pelo álcool e pelo sono, esperava um convite para dormir em casa do Grunho ou na pensão do costume, mas ele não estava pelos ajustes. Durante todo o fim‑de‑semana foi congeminando factos e interrogações que finalmente esperava dissipar durante o pequeno-almoço com o Besuntas. - ´Tou mais teso que um barrote…Deixavas-me ver aí uma notinha para um café e tabaco, princesa? - Em gestos lentos ela retirou uma nota da pequena bolsa preta em pele que tinha aos seus pés e entregou-lha, visivelmente amuada - Meia nota de cem? Opá…Obrigado, minha flor mais bonita dos jardins de Lisboa…prometo ligar-lhe ao fim do dia - deu-lhe um beijo demasiado rápido para o momento que tinha criado e abriu a porta saltando como uma mola assim que embolsou a nota no bolso de trás das calças - Ai! A minha vida... Mais curta que comprida! - O Besuntas já lá vinha. A Dona saiu também para tomar o volante do carro e cá fora o Grunho deu-lhe um abraço - Não te esqueças de telefonar, então. Um bom dia para ti, querido. - O Grunho ficou a vê-la entrar e dar à ignição. No outro lado da rua o Besuntas estava parado a sorrir com cara de parvo. - Atenção, atenção, maricas na área! - vociferou o Grunho com a mão a fazer de altifalante junto à boca. 

O amigo vinha com a roupa do trabalho, a braguilha estragada vinha meia aberta e as velhas botas salpicadas de manchas de tinta e sem atacadores. Ainda estremunhado àquela hora da manhã, estacou quando viu o carro a afastar-se, com o aceno de braço da Dona. - Fodasse, como é que convenceste a gaja a deixar-te trazer aquela espada, meu? Fodasse e eu nem as putas olham p´ra mim - o Grunho estava neste momento no passeio, descalçava-se para sacudir dos sapatos de vela alguns grãos de areia acumulados de quando foram até à praia depois do jantar. - Animal, vais poder comprar meia dúzia daqueles com a massa do prémio que tu deixaste que te roubassem! E as gajas vão ser tantas que vais desejar ser paneleiro, e isso vai ser muito, muito bom para mim! Agora anda lá que já não está aqui nem a polícia nem os bombeiros para te chatear os cornos - e agarrando no braço do amigo, puxou-o para dentro do café. O Besuntas contou que tinha ido ao café para saber dos procedimentos a fazer para reclamar o primeiro prémio, e os rufias, que ou já se encontravam em alguma mesa, ou chegaram depois dele ouviram a sua conversa dele para o Adolfo. Nem um minuto, foi o que bastou. Sentiu qualquer coisa bater-lhe na cara ou na cabeça e apagou. Ficou confuso o resto do dia, mas do prémio de um milhão no Euromilhões lembrava-se bem. O Adolfo reconheceu pelo menos um deles, que por sinal também era conhecido do Grunho. Era um bacano com quem se dava por causa do pombal que ele e mais uns marmanjos tinham quando andava com a mania dos pombos. Malta das Olaias. Nesse momento o Grunho soube por onde começar. Cessado o interrogatório,  a conversa começou a ficar menos tensa e já mais animados, acabaram por falar do fim de semana do Grunho com a Dona, rumaram para as características psicológicas das mulheres, do seu poder de influenciar as tomadas de decisão do seu gajo quando ele não se entesa para ela e a ultrajante questão de no trabalho já mandarem nos homens e por também ganharem ordenados por vezes muito superiores aos deles, o que veio rápidamente alavancar o surgimento de um atraso na sociedade actual. Os cigarros de ambos sucediam-se e já era perto da hora de almoço quando os dois se levantaram para pagar os cafés e os bolos de arroz mas   continuavam ainda a discutir. O tópico tinha recaído sobre as diferenças no corpo da mulher após o milagre da maternidade, que, segundo o Grunho nem sempre era assim tão nefasto e devastador, assim como os seus efeitos no desempenho sexual das mesmas. Separaram-se na rua, porque já estava com os olhos vermelhos e inchados do sono e foi para casa. Ainda assim custou-lhe a adormecer. Tinha um plano para montar. 

quarta-feira, 20 de abril de 2016

LISBOA.



Para bom seguimento da história é importante um breve intróito acerca da amizade, ou melhor dizendo, da irmandade Grunho-Besuntas. Estes companheiros, anteriores aos tempos de escola primária, só por uma única vez se separaram, que foi quando o Besuntas foi passar umas férias à tropa. Por um lado, o Besuntas, desde sempre muito alto e gordo para a idade, cabeça fraquinha, influenciável, medroso e demasiado fechado em si mesmo; o Grunho, por sua vez era o seu oposto. O único puto a arranhar uns fados de forma convincente, amigo de ajudar o próximo, um desbocado muito divertido e gozão. Tramava-o só aquele humor instável e implacável de não “deixes para amanhã se podes aviar já hoje” e uma lógica bastante linear assente nas quatro premissas mulheres, fado, vinho e porrada neles. O líder Grunho era o excesso, o seu fiel seguidor e Besuntas, o defeito. Faziam pandã e no bairro do Castelo ficaram conhecidos pela dupla Roque e Amiga, denominação essa muito sensível ao Grunho que, a quem ele ouvisse proferir mandava as bordoadas da ordem sem avisar nem perguntar. Mesmo os mais moderados ao chamar-lhes Asterix e Obelix era quase de bico fechado e a olhar em volta, não fosse alguém contar ao Grunho. Ao contrário do que poderia sugerir, era ele quem mais apreciava ter o amigo por perto, talvez por nunca ter tido irmãos e ser genuínamente um magala solitário ou apenas porque apreciava a lealdade sem interesse e sempre pronta que o Besuntas lhe oferecia. Em troca, livrava-o das companhias reles que por causa da jarda e do gamanço mandaram para a cana uns e para debaixo dos terrões, outros. Juntos cresceram e nunca se desuniram. No Verão, era vê-los nos campeonatos de sueca lá na junta, ou na altura do Santo António a montar o estaminé, a tirar finos, o Besuntas a marchar e o Grunho no meio da maralha à cata de turistas, apresentando-se como descendente da realeza embora zelar pela boa segurança dos visitantes do bairro fosse a sua missão. Também costumavam ir em Agosto para a rolote dos pais do Besuntas na Costa da Caparica. Na rua, na praia, na taberna, eram a mesma família. No que toca a trabalho, um tinha a obrigação de encontrar emprego para o outro sempre que tal fosse necessário. Trabalharam durante algum tempo nas obras e nas pinturas e essas são as ocupações a que sempre voltam quando algum vizinho pede que lá vão a casa. Quando não têm mais nada, o batente é ajudar o pai do Besuntas, o senhor Joaquim, na entrega dos móveis da carpintaria e aproveitam a carrinha para tratar de mudanças, com o lucro a dividir irmamente. Era este o rame-rame dos dois.




Após o trabalho da manhã, o Grunho e o Besuntas foram ao Cais do Sodré, deixaram a carrinha a trabalhar em frente à taberna e com o dinheiro da gorgeta foram comer a bifana e beber a taça de branco fresquinho do esquema. Tinham vindo desde o Príncipe Real a debater entre si as diferenças no corpo da mulher depois do milagre da maternidade e seus supostos efeitos no carnal comportamento do acto sexual. - Tás é maluco, já te disse e volto a repetir, enrolei-me várias vezes com gajas mães de filhos e elas até pareciam virgens. Daquilo que eu sei falo eu! - o Besuntas, abanava a cabeça - Não, isso eras tu que estavas bêbado e falhaste na pontaria! Estás enganado, mas como és teimoso como esta porta aqui atrás de mim, deixa lá estar isso. - acabou de um trago a meia tola de vinho antes de continuar - Fodeste-me bem hoje. Fiquei com as costas todas rechassadas. - Queres o quê, estavas a fazer-te forte ao pé da madame, por isso foi bem feito! - Eu trabalhei umas vinte vezes mais que tu! A bem ser eu é que merecia ficar com a gorja toda. Já te tenho dito que para não fazer nada já cá estava eu antes de tu chegares! Não me adianta teres a força de um boi se depois ficas só a pastar! - o Grunho, que já estava com o cigarro espetado na beiçola e a procurar nos bolsos o isqueiro simulou um movimento súbito com a cabeça para a frente. O Besuntas, indiferente, alarvando com a comida, enchia a boca ao máximo. - Olha lá uma coisa que eu me lembrei agora, escusavas de ter mandado aquela pantufada no cão da rapariga, estás a ouvir, ó bicho? Para que é que foi aquela merda, olha que ela desconfiou! - ao ouvir isto o Besuntas começou a rir alto com as mãos na barriga - Viste o cão? pirou-se lá para um canto e nunca mais se deixou ver! fui dar com ele todo cheio de tremeliques! - Isso tem cá uma piadola, meu! E se eu te mandasse um piparote nessas orelhas de burro, hum? Também havia de me cagar a rir, eu! - O Besuntas, talvez já meio tocado pela vinhaça, continuava divertido e até se engasgou com a risota - Tu viste-a quando chegámos, estava cá com uma cagufa que minha mãe! É da tua pinta de cigano e mais essa barba por desfazer, que até assustas as pessoas! Ela até começou a refundir merdas a toda velocidade para dentro da mala, que eu topei! - Eu também reparei, não me ouviste dizer-lhe “ó filha escute uma coisa, eu não lhe quero a mala, só a mobília”! - Foi isso, foi…começaste a chamar-lhe filha e saiste de lá a chamar-lhe filhota! Ora diz-me lá, acabaste por combinar sair com ela, não foi seu moinante desgraçado, deste-lhe música enquanto eu carregava os caixotes todos sozinho! Eu bem ouvia as risadazinhas dela! - Jesus, o que era aquilo, dava mesmo vontade de mexer e de cheirar! Não resisti, deixei-me envolver! - Aposto que ainda há bocado já estavas a mandar uma mensagem para ela - Uma? Três ou quatro! Não entendo qual é a tua dúvida, companheiro, sabes que comigo é sempre a aviar como o Baltazar! E ainda devias ter visto a cara dela, quando me borrifei com o perfume do marido antes de sair de casa! Quando me perguntou se eu não tinha vergonha nenhuma na cara eu só lhe respondi que não, só tinha era beleza! - o Besuntas fez sinal com a cabeça e saiu para a rua - Sabes muito mas não andas de Mercedes, andas a pé, igual a eu. Só agora é que começas a recuperar lá da tua dentista cámone, é o que é! Andaste para aí um mês em que não servias para nada, muito menos para carregar móveis e sofás, mas vejo que aos poucos já estás a arribar! - o Grunho encolheu os ombros - Epá isto ainda não está cinco estrelas, mas garanto-te que vai ficar! Tem lá calma, deixa acabar o cigarro! Espera lá, tu pagaste ao homem? - O Besuntas deu à chave enquanto o Grunho de pé, pensava no que havia de fazer, decidindo por fim deitar o cigarro para o chão e entrar, pouco resignado, na carrinha - Pronto, tinha que ser e até me admirava que não fosse! Dá cá a massa! Tu deves ter sido cagado em vez de parido…Ainda por cima eu conheço o homem! - o Grunho levou a mão à testa - Ai a minha vida…mais curta que comprida! - Um pouco mais à frente, pararam e o Grunho saindo disparado foi a correr pagar a despesa.






Desde o seu regresso, sentia-se estranho sem estar deprimido, e exausto, sem se sentir cansado. A seguir ao almoço atirou-se para cima da cama e voltou a sonhar com a Tiradentes, Londres, o momento do adeus derradeiro, via-se a procurar o nome dela entre os gavetões do Alto de S. João debaixo de chuva. Acordou com dor de cabeça, os olhos húmidos e uma visível vontade de mijar. Juntando as mãos em concha, bebeu água directamente da torneira da casa-de-banho. Lá fora a chuva terminara o seu serviço de limpeza gratuito. Ouviu um toque breve do telemóvel. A cliente da manhã escrevia a dar boas tardes e aproveitava para perguntar se estava tudo bem. Foi abrir a gaveta onde guardava a colecção de cuecas do mulherio que já lhe passara pelas gânfias. Estava a precisar. Era coisa que o animava sempre, pegar e cheirar cada uma das peças, rememorar as circunstâncias da aventura passada com a ex-proprietária da lingerie, se ela era estrangeira ou não, o formato do seu rosto, o feirtio do corpo, a cor dos seus cabelos, o nome com que se lhe apresentaram. Era esta a âncora a que o Grunho se agarrava para reavivar algumas lembranças desvanecidas na sua memória. Certa vez a mãe atirou com toda a colecção pela janela e o Grunho até mandou fogo pelas ventas. Ia cantando a espaços um fado e provavelmente acabaria por se masturbar quando ouviu bater à porta. Eram pancadas fortes que não cessaram até ele ainda nu, ter espreitado pela porta. Era a Cristina, a filha adolescente e obesa de uma vizinha. O Grunho abriu a porta, chateado - Olha lá, o teu amigo está a apanhar forte e feio ali no café e tu para aqui encafuado! - o Grunho vestiu as calças de bombazine da véspera e nos pés enfiou os chinelos de andar por casa para ser mais rápido e saiu de troco nu. Num ápice estava junto ao Besuntas. No café todos falavam ao mesmo tempo - Foi a amarra! Levaram-lhe a amarra! - sentado a uma mesa, o Besuntas pressionava um saco de gelo contra a cabeça. Alguns fios de sangue escorriam até ao queixo de onde caíam e sobre o tampo da mesa formavam pequenas poças - Eu vi que também lhe tiraram alguma coisa das mãos, deve ter sido massa… - o Grunho agachou-se para ver melhor os golpes do Cristo ensaguentado - Então, cabeçudo, quem é que te fez este trabalho? - trouxeram um copo de água que o Grunho tratou de verter pela goela a baixo do amigo - Bebe, que a perder sangue assim vais parecer é um bacalhau da Noruega… Porque é que te fizeram isso? Bateram-te para te roubar? - O Besuntas olhava fixamente para o tecto sem pestanejar. Ao longe ouvia-se o alarido da ambulância que já vinha a caminho - Sim. Vim cá para ver dos números da sorte. Os gajos que estavam atrás de mim filaram-me quando viram que eu tinha ganho a talega. Eram dois ou três. E ainda me ficaram com o fio de ouro, os cabrões. E o telemóvel. - O Grunho, mais branco que um guardanapo pôs-se de pé mas ao sentir a força das pernas fugir-lhe foi quem acabou com a água no copo do Besuntas.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

MOVIMENTO PERPÉTUO.

Do tempo que que passaram juntos em Lisboa o Grunho trazia na lembrança uma rapariga que ele agora tinha certa dificuldade em reconhecer. Chateava-o não encontrar na mulher jovem de olhar fixado no chão cinzento, a mesma Tiradentes arisca, gozona e refilona que lhe costumava bulir com os nervos a ponto de mandá-la comportar-se primeiro, pô-lo a gaguejar e a coçar a cabeça depois e no fim sempre se resignar em silêncio com um encolher de ombros e com ela ancorada no seu pescoço. O rosto achinesado que o Grunho nunca se cansava de olhar e acariciar no meio de muitos beijos e mordiscadelas tinha-se como que ofuscado numa melancolia diferente da tristeza-quase-que-vai que ele próprio também sentia mas que nela agora o mesmo que estar a comparar uma fotografia a cores ao lado de outra a preto e branco. De entre tudo, aquilo que mais espécie lhe fez foram os papos azulados sob os olhos e se isso era o resultado de ela andar a queimar as pestanas e a mioleira com tanto estudo então tinha vontade de lhe aconselhar umas férias de pelo menos uns trinta dias. Também tinha notado nela um exagerado aumento do consumo de cigarros. Se os cigarros ainda que mesmo em pequeno número ele já considerava totalmente dispensáveis nas senhoras de bem, via agora serem acesos em gestos sem paciência, fumados rapidamente e deitados fora a meio pau, em modo automático e repetidamente. – Isso, chupa bem! Anda a fumar mais que o dobro do que fumava lá em Lisboa, ela! – mandou o Grunho para o ar, tratando-a ora por você ou por tu, como era seu costume sempre que se irritava com ela – Se você fosse um gajo eu já estava desconfiado que tinha apanhado uma paneleirite qualquer. - O Grunho já estava a ficar agitado, alguma coisa havia que não estava a fazer sentido ali e isso deixava-o desconfortável. - Eu vim porque achei que me querias ver e por isso aceitei o convite, porque se tu me tens dito, eu de certezinha não estaria aqui a passear-me a esta hora! – foi assim, na sua forma directa de verbalizar aquilo que pensa sem ornamentos nem meninices que o Grunho estacou a meio do passeio com os braços cruzados fazendo rolha à livre circulação das pessoas a caminho do emprego a seguir ao almoço. A Tiradentes não hesitou nem gaguejou. Com aquele lindíssimo sorriso que lhe acentuava as covas ao lado da boca encolheu os ombros - Um doutoramento demora muito tempo e por vezes consome-me demasiadas forças, só para teres uma ideia, nestes três meses ao todo não escrevi mais do que uma dúzia de páginas para a tese… - o Grunho, interrompeu-a bruscamente - A tese, a tese…teso ando eu há quase quarenta anos já daqui a pouco! Isso para mim é letra de música, os livros que leu fui eu que os deitei fora, por isso não está a querer ensinar nada ao professor, pois não? Acerca dessas olheiras, ainda vão pensar que eu sou dos que arreiam nas mulheres, mas pronto, já nem me quero alongar mais nesta questão. – A Tiradentes, que parecia divertidíssima com a má-disposição do Grunho, bateu lentamente com a palma da mão no peito dele - Estou tranquila. Se eu tenho olheiras, pelo menos não caminho nem me sento como uma mulher que acabou de dar à luz nem tenho vestígios de um corte por cima do sobrolho, mas as tuas aventuras bairristas não mas contas tu, tenho de ser sempre eu a arrancar-te essas histórias, não é? – A Tiradentes exulta com as touradas do Grunho desde o dia em que ele lhe mostrou duas páginas do Correio da Manhã acerca da notícia de um grupo de delinquentes que andava pelos bairros em volta do Castelo a aterrorizar os habitantes, especialmente os mais idosos, com assaltos violentos em que eram aplicadas técnicas de imobilização e sufocamento utilizadas em lutas de artes marciais importadas do Brasil. Foi nesta altura que o Grunho, até à morte um defensor máximo da sua nobre colina, se envolveu numa investigação pessoal em que prometeu e de facto cumpriu, apanhar e sacudir o pó a cada um dos membros que compunham aquele gangue. Com efeito, a despeito das histórias das chaves, dos mata-leões, das joelhadas e das cotoveladas, o Grunho, famoso por torce-los a todos nos campeonatos de braço de ferro e que à mocada batia tão rápido que deixava os outros sem reacção, mesmo nunca tendo ensinamentos de boxe ou de karaté nem de coisa alguma, não se deixando amedrontar pelo clima de terror que a mitragem gerou na pacata vizinhança, em duas semanas foi apresentando sucessivamente na 4ª esquadra da Rua da Palma todos os criminosos. O seu heroísmo grangeou-lhe uma certa inveja entre a meia dúzia de polícias durões que assistiam incrédulos áquela série de detenções civis com entrega no domicílio prisional e que mais pareciam flashbacks próprios de filme americano do que outra coisa qualquer. – Vá, querido, conta…sabes que eu vibro com as tuas cenas de luta! – Muito fino, o Grunho bem que topou ela a desviar a conversa mas decidiu não insistir em mais perguntas, afinal, não eram namorados nem ele gostava assim tanto da Tiradentes para se preocupar. Acima de tudo considerava que se a sua estadia em Londres ia ser tão breve, o que menos lhe apetecia fazer era aborrecer-se fosse por que motivo fosse. Por esses motivos decidiu fazer-lhe a vontade e responder acerca do corte na testa que lhe custou uma costura de cinco pontos – Isto não foi nada de especial, apenas uma diferença de opiniões, dois pontos de vista que chocaram um contra o outro. O mundo conspira para que eu não passe um dia sem andar à porrada, é um problema que me acontece muita vez e quase nunca dá para ser evitado. Pronto, é por isso que ando com o toutiço meio amolgado mas olha, o outro mangas é que foi de charola para o hotel de 5 estrelas! – fungou, puxou e juntou uma gosma de peso antes de a escarrar para o asfalto. A Tiradentes rindo e apontando para o rabo dele – Mas o fulano sodomizou-te, foi isso não foi? É que estás com um andar esquisito. – O Grunho ficou muito sério e um tanto constrangido mas não se ia descozer 

um milímetro sobre o assunto do seu furúnculo – Não fui sodomizado mas apanhei aqui um biscate que até ando todo azul! Não rias! E que tal se agora fossemos comer uma bucha? Eu cá já rapava um tacho! ´Tou com uma larica que vai lá vai...- disse o desavergonhado junto aos semáforos em frente ao Harrod´s. – Sim, meu querido, vamos comer. Imaginava que já tivesses fome! O que te apetece? - riu, divertida - Qualquer coisa, pá… com fome não há ruim pão! - Espera só mais um pouco, vou levar-te ao restaurante mais chique do East-End, tive que reservar a mesa há quinze dias - Nisto os dois já atravessavam a passadeira quando o Grunho que pensava que ela tinha apenas tropeçado no próprio pé, agarrando-a a tempo no cós das calças, içou-a antes que caisse. No passeio ele assoprou-lhe para o rosto e dava-lhe palmadas no rosto, o globo dos olhos estavam com o branco voltado para a frente e a face lívida como a cal. O Grunho sacou de dentro da mala dela a garrafinha de água e entornou um pouco sobre a testa. Ela recobrou os sentidos e manteve-se sozinha de pé ainda que algo confusa. – Então dona, é agora que me vai contar o que se passa consigo? Faz-me esse favor? E não me vais dizer que foi só uma quebra de tensão que isso para mim é letra de música – A Tiradentes só dizia que não com a cabeça – Mas não é nada... como é que tu dizes, o que dobra não parte! Deve ser apenas fraqueza…creio que afinal não és só tu que estás com fome – O Grunho, que tremia muito, passou a mão pela massa negra do seu cabelo até à nuca. – Já estou farto e cheio dessa conversa, preciso mesmo de saber se tem alguma coisa porque me deixou aqui completamente acagaçado. Vamo-nos sentar algures.- Entraram no Starbucks da Wigmore Street que estava completamente lotado. O Grunho reparou num rapaz que dormitava com o telemóvel na mão, que estava carregar, ligado à ficha. A Tiradentes ia pedir com gentileza se os dois podiam ocupar a mesma mesa mas antes que o rapaz sequer abrir completamente os olhos, o Grunho pegou-lhe pelo braço que estava mais perto e puxou-o para fora, fazendo o pobre rapaz estatelar-se no chão – Rua, pá! Quem quer dormir paga a guarda! - num visível estado de pânico, o outro pegou no telemóvel e correu dali para fora deixando o carregador na parede, provavelmente a pensar que escapava a um assalto. O Grunho e a Tiradentes sentaram-se um frente ao outro – Ok, como tu já percebeste, eu estou doente. Gravemente doente. Vim a Londres para fazer um último tratamento, uma coisa experimental porque eu não quero passar pelo mesmo calvário por que a minha mãe passou. Convidei-te porque queria que viesses, sim. Porque senti que com quem eu mais queria estar era contigo. Foram as saudades, como dizem os portugueses. – O Grunho, segurando-as nas suas, sentia as mãos dela suadas e gélidas e pela primeira vez encontrava-lhe na expressão alguma coisa muito próxima de um fim. Naquele momento, todo o carinho que ele sentia pareceu tomar-lhe o pulso, ganhando uma outra expressão, mais terna, mais humana. Como uma epifania ele nesse instante soube que aquela ali era uma mulher com quem podia vir a passar muitos e bons momentos, tomando mais tempo e espaço do que aquele que é habitual uma mulher ocupar na vida dele. Esta sintonia em vez de o libertar, deixou-o pouco à vontade. Os olhos marejaram-lhe de lágrimas e o Grunho não é homem que goste de surpresas. Principalmente deste tipo. – Eu não podia estar mais feliz. Aqui, na minha cidade preferida e na companhia do meu lindo poeta maldito… - piscou-lhe o olho e sorriu - sinto-me mais normal quando estou contigo, tornas tudo muito mais simples e isso é só aquilo que eu nunca tive na vida. A tua maneira, esse ar de gozo que pões em tudo o que dizes e fazes e que nunca deixa vislumbrar se estás a falar a sério ou a brincar, o teu calão, o Fado. E daqui a uns dias vais voltar para o teu estranho e encantador mundo. Vais ser feliz e fazer alguém feliz. – O Grunho empertigou-se no assento e inspirou muito longa e profundamente. Recompôs-se – Os meus casos com nunca terminam mal nem bem, simplesmente acabam. Eu não sou apaixonável, namorável e ainda menos casável. Sou assim, mas a culpa não é minha, é da minha mãe que devia ter fechado as perninhas em vez de as ter aberto. Enfim, tem de aceitar na sua linda cabecinha aquilo que o seu coração ja sabe, e o que ele sabe é que eu não era o homem indicado para si. Merece muito melhor do que este falhado. Não fique desanimada com isso. Eu sou o que menos importa. E recuso-me a aceitar falar de um livro que pode estar no último capitulo e nas últimas páginas mas que ainda não vai ser fechado. Não quero – levantou-se - Tenho que sair, preciso ir fumar um cigarro. E também já perdi a fome que tinha - Abraçaram-se durante alguns segundos. - Let´s go por aí abaixo? 

Foram logo para casa dela, no carro ouviram Dead Can Dance pelo caminho. O Grunho nunca tinha estado tanto tempo em silêncio na companhia de uma mulher. Chovia agora a bom ritmo quando chegaram. - Embora! Vamo-nos esconder das luzes! – soltou ela antes de lhe pegar na mão e deitarem a correr até ao portão da casa de tijolos à vista. Foi uma das suas melhores noites de amor e depois dormiram até de manhã. Despertaram com a luz que entrava generosa pelo quarto dentro. – Vês, hoje pôs-se um dia bonito! – O Grunho, que já estava acordado há muito antes dela ainda demorou a responder - Hoje não há sol que me aqueça. - E mudou de posição, fazendo-se rolar para o lado da parede.