sábado, 31 de outubro de 2015

FADISTA, VADIO.

AND IF YOU HAVE FIVE SECONDS TO SPARE 
THEN I´LL TELL YOU THE STORY OF MY LIFE... 

"Half Person" The Smiths



Nada mais excitante para um homem do que receber uma mensagem de número de telefone desconhecido a dizer simplesmente “Olá”. Esta situação quando se repete por mais por mais do que três vezes seguidas em uma semana deixa de ser encarada como mero engano e passa a ser determinação. Para o Grunho significava que alguma gaja se andava a entreter à sua custa e balançava entre devolver a chamada e esperar que ela se desse a conhecer. Não era dele esperar, mas como duvidava que fosse algum engate antigo e como não o tinha associado à sua lista de contactos, hesitava. Estava consciente de que corria o risco de ela desistir de enviar mensagens se não tomasse uma atitude rápida, que o timing nestas coisas é de importância capital. Era neste vai-vem de possibilidades que o Grunho cogitava já de pau enrijecido. Pousou o telemóvel e aproveitou a mão livre para aumentar o volume do pequeno rádio a pilhas sintonizado na Rádio Amália. De cigarro quebrado sobre uma das orelhas, voltou-se a sentar nas escadas mal recostado ao corrimão ferrugento. Tinha aos seus pés um saco com latas de bebidas e de conservas e um género de esparguete de fios de norte, atacadores e cordas vulgares. Em seu redor, um púlpito de miúdos demasiado aligeirados para aquele fim de tarde outonal pareciam estar a assistir ao primeiro passo do Homem na Lua. Observavam com as cabeças coladas umas às dos outros a construção do seu walkie-talkie artesanal. De camisola com mangas arregaçadas até aos cotovelos o Grunho ia despachando a empreitada, entregando a cada par de rapazes o seu novo dispositivo que de imediato desaparecia em barulhenta algazarra. – Chavalos, isto já tá a ficar frio, pá! Bazem lá daqui que eu vou p´ra casa! Já aprenderam como se faz esta merda agora levem isto daqui que eu não quero lixo nas escadas, ouviram? - Levantou-se, embolsou o rádio sem o desligar e com todo o cuidado para não o deixar escorregar, espreitou o novíssimo iPhone cor de ouro, enfiado numa peúga de algodão enquanto não se decide a ir ver de uma capa em condições para o telemóvel. Decidiu-se a telefonar. Era ela. Tinha mudado de número. 


Conhecera a arquitecta de Braga quando viajava à pendura no 28 e por sorte topou o romeno a deitar-lhe a mão à bolsa enquanto toda sorridente ela se debruçava à janela para alcançar com a máquina o melhor ângulo da Sé. Saltou antes do eléctrico parar e fez uma espera ao ladrão. Revistou-lhe os bolsos e foi deitando para o chão tudo o que lhe encontrou. De seguida girou à volta do homem e sem que este tivesse hipótese de se debater começou a arrastá-lo entre gritos desesperados de aflição em romeno, português e inglês, muitos deles dirigidos à própria polícia, à qual implorava ajuda. O Grunho, sempre em silêncio e sem demonstrar qualquer emoção ou esforço físico, continuou a galgar os degraus que conduziam às proximidades do castelo e ia tão determinado em virá-lo de cabeça para baixo do alto das muralhas que só à vista do brilho das cancelas se lembrou que a entrada no castelo é paga vai já a caminho de dez anos. A mulher, que depois de recuperar os seus bens começara a correr atrás do Grunho para lhe agradecer o gesto, acabava de chegar até junto dos dois, com o sangue a colorir-lhe o rosto, tremendo e de todo em todo assustada com o desfecho das intenções justiceiras do Grunho. Este, de súbito, mudara o trajecto em direcção ao antigo mictório onde arrumou com o ladrão depois de disparar uma repetição de murros e pontapés que cobriram o outro da cabeças aos pés. – Já te tinha avisado uma vêz, camarada! Agora vais fazer mais uma viagem até à esquadra e ´tás cheio de sorte em não teres ido aterrar à Rua Augusta! – e já pegava o outro pelos colarinhos da camisa quando ela lhe segurou os pulsos e insistiu que deixasse ali mesmo o homem, que ele já tinha tinha sido castigado o suficiente e se o entregasse à polícia seria necessário uma queixa formal dela, coisa que não estava disposta a fazer. Perante a sua insistência, o Grunho largou o corpo inerte que se foi enrolar em posição fetal, de olhos marejados de lágrimas e a largar gemidos de voz enrouquecida. – Este animal cansou-me bem… - Limpou rapidamente com as mangas as gotas de suor que lhe escorriam da testa enquanto endireitava as costas para tentar recuperar o fôlego – Obrigado – disse ela, enquanto o afastava daquele local, puxando-o por um braço e começando a atravessar a multidão que se tinha juntado para assistir - muito obrigado por ter recuperado a minha carteira, o dinheiro, os documentos… Não lhe apetece um pouco de água? 


Marcaram encontro para essa mesma noite no Bairro Alto onde foram dar a um pequeno bar iluminado a velas decorativas que passava músicas do caribe. Experiente dançarino, embora nada acostumado às danças sul-americanas, o Grunho improvisava ora acelerando, ora abrandando drásticamente o ritmo, o que juntamente com as suas chalaças e palavrões fazia a nova amiga contorcer-se de riso. Quando vieram para a rua fumar, ela mandou um pequeno murro no ombro musculado do Grunho – Sabes porque é que eu hoje não quis apresentar queixa na polícia? – Opá – disse o Grunho, encostando-se todo à parede do bar e cruzando as longas pernas - é que nem me fales mais desse bicho que bem arrependido estou de não o ter enforcado com o cinto que… - Pssiu! – tapou-lhe a boca com a palma da mão – Eu não quis perder mais tempo. Só pensei em sair dali contigo o mais rapidamente possível. Ter-te comigo o resto da manhã, da tarde, da noite…Conhecer-te era urgente. Por algum motivo sociológico, talvez. Fazes-me lembrar uma história do Virgílio Ferreira, um conto chamado Fado Corrido, ou coisa assim, se não me atraiçoa a memória…que falava dum tipo como tu, fadista e boémio, que também morava aqui para as tuas bandas, mas olha, essa personagem acabou morta numa luta de facas! Tu és um bocado maluco não és? – O Grunho riu e disse, - Não sou maluco nada. As pessoas põem-me é maluco, todos os dias, a toda a hora, caralho. Umas mais, outras menos, mas toda a gente me põe doido. Detesto as pessoas, pá! Mas tu não me pões maluco, babe… tu o que me pões é variado da tola! – começando a beijá-la primeiro no pescoço, maxilar, queixo, até chegar aos lábios. – E quanto às naifadas, olha-me aqui – Puxou a camisa de riscas para cima e mostrou uma costura esbranquiçada um pouco acima do umbigo e voltando as costas uma outra, mais fina, na zona lombar. – Olha para ti... não sei como é que eu estou agora, contigo, aqui neste local. Claro que és giríssimo, mas nada a ver com o meu tipo de homem, pareces mais um matador espanhol do antigamente ou aquele género de marinheiro chunga saído directamente dos meus pesadelos. Mas confesso-te, hoje a seguir ao jantar levaste-me à certa com a tua versão fadista da “Detalhes” – O Grunho sorriu e largando-a para procurar outro cigarro – Opá… Eu queria mesmo era que gostasses de mim, porque até dei cabo da minha imagem ao pé daqueles dois guitarristas! Eu cá só canto fado vadio, ´tás a ver? – e foi fado o que tu cantaste, meu querido vadio… - disse ela abraçando-o por trás das costas. – Tu, sem sequer teres noção disso, dás-me as mil e uma noites todas de uma só vez! Não consigo explicar e nem sei se quero, sou franca! 


No último dia, ao despedirem-se prometeram novas visitas, a primeira das quais pela parte do Grunho, a Braga. Palavras e promessas de circunstância, medidas e pesadas sempre pela mesma bitola, tanta, tanta vêz, ao longo dos anos. Que era muita pena ela não viver em Lisboa, ao pé dele, sim não se esqueceria de dar uso ao lindíssimo telemóvel novo que ela lhe tinha oferecido, claro, da próxima vêz nem pensar em hostels, que ele nem sequer sairia do apartamento dela, sobretudo do interior da sua cama de onde a partir da qual lhe cantaria de novo a tal música do Roberto Carlos... Ao último aviso o Grunho beijou-lhe a mão e ela desapareceu no comboio deixando-o sozinho na estação vazia. Quando chegou à rua, sentiu o frio, o Tejo e a tristeza mordiscarem-lhe os ossos. Olhou fixamente para o telemóvel dourado. Arrumou-o com uma delicadeza extrema num bolso de trás das calças e aproveitou a mesma mão para levar um cigarro à boca. Não tinha isqueiro. Afastou-se como quem se afasta da morte, meneando a cabeça.