quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

MOVIMENTO PERPÉTUO.

Do tempo que que passaram juntos em Lisboa o Grunho trazia na lembrança uma rapariga que ele agora tinha certa dificuldade em reconhecer. Chateava-o não encontrar na mulher jovem de olhar fixado no chão cinzento, a mesma Tiradentes arisca, gozona e refilona que lhe costumava bulir com os nervos a ponto de mandá-la comportar-se primeiro, pô-lo a gaguejar e a coçar a cabeça depois e no fim sempre se resignar em silêncio com um encolher de ombros e com ela ancorada no seu pescoço. O rosto achinesado que o Grunho nunca se cansava de olhar e acariciar no meio de muitos beijos e mordiscadelas tinha-se como que ofuscado numa melancolia diferente da tristeza-quase-que-vai que ele próprio também sentia mas que nela agora o mesmo que estar a comparar uma fotografia a cores ao lado de outra a preto e branco. De entre tudo, aquilo que mais espécie lhe fez foram os papos azulados sob os olhos e se isso era o resultado de ela andar a queimar as pestanas e a mioleira com tanto estudo então tinha vontade de lhe aconselhar umas férias de pelo menos uns trinta dias. Também tinha notado nela um exagerado aumento do consumo de cigarros. Se os cigarros ainda que mesmo em pequeno número ele já considerava totalmente dispensáveis nas senhoras de bem, via agora serem acesos em gestos sem paciência, fumados rapidamente e deitados fora a meio pau, em modo automático e repetidamente. – Isso, chupa bem! Anda a fumar mais que o dobro do que fumava lá em Lisboa, ela! – mandou o Grunho para o ar, tratando-a ora por você ou por tu, como era seu costume sempre que se irritava com ela – Se você fosse um gajo eu já estava desconfiado que tinha apanhado uma paneleirite qualquer. - O Grunho já estava a ficar agitado, alguma coisa havia que não estava a fazer sentido ali e isso deixava-o desconfortável. - Eu vim porque achei que me querias ver e por isso aceitei o convite, porque se tu me tens dito, eu de certezinha não estaria aqui a passear-me a esta hora! – foi assim, na sua forma directa de verbalizar aquilo que pensa sem ornamentos nem meninices que o Grunho estacou a meio do passeio com os braços cruzados fazendo rolha à livre circulação das pessoas a caminho do emprego a seguir ao almoço. A Tiradentes não hesitou nem gaguejou. Com aquele lindíssimo sorriso que lhe acentuava as covas ao lado da boca encolheu os ombros - Um doutoramento demora muito tempo e por vezes consome-me demasiadas forças, só para teres uma ideia, nestes três meses ao todo não escrevi mais do que uma dúzia de páginas para a tese… - o Grunho, interrompeu-a bruscamente - A tese, a tese…teso ando eu há quase quarenta anos já daqui a pouco! Isso para mim é letra de música, os livros que leu fui eu que os deitei fora, por isso não está a querer ensinar nada ao professor, pois não? Acerca dessas olheiras, ainda vão pensar que eu sou dos que arreiam nas mulheres, mas pronto, já nem me quero alongar mais nesta questão. – A Tiradentes, que parecia divertidíssima com a má-disposição do Grunho, bateu lentamente com a palma da mão no peito dele - Estou tranquila. Se eu tenho olheiras, pelo menos não caminho nem me sento como uma mulher que acabou de dar à luz nem tenho vestígios de um corte por cima do sobrolho, mas as tuas aventuras bairristas não mas contas tu, tenho de ser sempre eu a arrancar-te essas histórias, não é? – A Tiradentes exulta com as touradas do Grunho desde o dia em que ele lhe mostrou duas páginas do Correio da Manhã acerca da notícia de um grupo de delinquentes que andava pelos bairros em volta do Castelo a aterrorizar os habitantes, especialmente os mais idosos, com assaltos violentos em que eram aplicadas técnicas de imobilização e sufocamento utilizadas em lutas de artes marciais importadas do Brasil. Foi nesta altura que o Grunho, até à morte um defensor máximo da sua nobre colina, se envolveu numa investigação pessoal em que prometeu e de facto cumpriu, apanhar e sacudir o pó a cada um dos membros que compunham aquele gangue. Com efeito, a despeito das histórias das chaves, dos mata-leões, das joelhadas e das cotoveladas, o Grunho, famoso por torce-los a todos nos campeonatos de braço de ferro e que à mocada batia tão rápido que deixava os outros sem reacção, mesmo nunca tendo ensinamentos de boxe ou de karaté nem de coisa alguma, não se deixando amedrontar pelo clima de terror que a mitragem gerou na pacata vizinhança, em duas semanas foi apresentando sucessivamente na 4ª esquadra da Rua da Palma todos os criminosos. O seu heroísmo grangeou-lhe uma certa inveja entre a meia dúzia de polícias durões que assistiam incrédulos áquela série de detenções civis com entrega no domicílio prisional e que mais pareciam flashbacks próprios de filme americano do que outra coisa qualquer. – Vá, querido, conta…sabes que eu vibro com as tuas cenas de luta! – Muito fino, o Grunho bem que topou ela a desviar a conversa mas decidiu não insistir em mais perguntas, afinal, não eram namorados nem ele gostava assim tanto da Tiradentes para se preocupar. Acima de tudo considerava que se a sua estadia em Londres ia ser tão breve, o que menos lhe apetecia fazer era aborrecer-se fosse por que motivo fosse. Por esses motivos decidiu fazer-lhe a vontade e responder acerca do corte na testa que lhe custou uma costura de cinco pontos – Isto não foi nada de especial, apenas uma diferença de opiniões, dois pontos de vista que chocaram um contra o outro. O mundo conspira para que eu não passe um dia sem andar à porrada, é um problema que me acontece muita vez e quase nunca dá para ser evitado. Pronto, é por isso que ando com o toutiço meio amolgado mas olha, o outro mangas é que foi de charola para o hotel de 5 estrelas! – fungou, puxou e juntou uma gosma de peso antes de a escarrar para o asfalto. A Tiradentes rindo e apontando para o rabo dele – Mas o fulano sodomizou-te, foi isso não foi? É que estás com um andar esquisito. – O Grunho ficou muito sério e um tanto constrangido mas não se ia descozer 

um milímetro sobre o assunto do seu furúnculo – Não fui sodomizado mas apanhei aqui um biscate que até ando todo azul! Não rias! E que tal se agora fossemos comer uma bucha? Eu cá já rapava um tacho! ´Tou com uma larica que vai lá vai...- disse o desavergonhado junto aos semáforos em frente ao Harrod´s. – Sim, meu querido, vamos comer. Imaginava que já tivesses fome! O que te apetece? - riu, divertida - Qualquer coisa, pá… com fome não há ruim pão! - Espera só mais um pouco, vou levar-te ao restaurante mais chique do East-End, tive que reservar a mesa há quinze dias - Nisto os dois já atravessavam a passadeira quando o Grunho que pensava que ela tinha apenas tropeçado no próprio pé, agarrando-a a tempo no cós das calças, içou-a antes que caisse. No passeio ele assoprou-lhe para o rosto e dava-lhe palmadas no rosto, o globo dos olhos estavam com o branco voltado para a frente e a face lívida como a cal. O Grunho sacou de dentro da mala dela a garrafinha de água e entornou um pouco sobre a testa. Ela recobrou os sentidos e manteve-se sozinha de pé ainda que algo confusa. – Então dona, é agora que me vai contar o que se passa consigo? Faz-me esse favor? E não me vais dizer que foi só uma quebra de tensão que isso para mim é letra de música – A Tiradentes só dizia que não com a cabeça – Mas não é nada... como é que tu dizes, o que dobra não parte! Deve ser apenas fraqueza…creio que afinal não és só tu que estás com fome – O Grunho, que tremia muito, passou a mão pela massa negra do seu cabelo até à nuca. – Já estou farto e cheio dessa conversa, preciso mesmo de saber se tem alguma coisa porque me deixou aqui completamente acagaçado. Vamo-nos sentar algures.- Entraram no Starbucks da Wigmore Street que estava completamente lotado. O Grunho reparou num rapaz que dormitava com o telemóvel na mão, que estava carregar, ligado à ficha. A Tiradentes ia pedir com gentileza se os dois podiam ocupar a mesma mesa mas antes que o rapaz sequer abrir completamente os olhos, o Grunho pegou-lhe pelo braço que estava mais perto e puxou-o para fora, fazendo o pobre rapaz estatelar-se no chão – Rua, pá! Quem quer dormir paga a guarda! - num visível estado de pânico, o outro pegou no telemóvel e correu dali para fora deixando o carregador na parede, provavelmente a pensar que escapava a um assalto. O Grunho e a Tiradentes sentaram-se um frente ao outro – Ok, como tu já percebeste, eu estou doente. Gravemente doente. Vim a Londres para fazer um último tratamento, uma coisa experimental porque eu não quero passar pelo mesmo calvário por que a minha mãe passou. Convidei-te porque queria que viesses, sim. Porque senti que com quem eu mais queria estar era contigo. Foram as saudades, como dizem os portugueses. – O Grunho, segurando-as nas suas, sentia as mãos dela suadas e gélidas e pela primeira vez encontrava-lhe na expressão alguma coisa muito próxima de um fim. Naquele momento, todo o carinho que ele sentia pareceu tomar-lhe o pulso, ganhando uma outra expressão, mais terna, mais humana. Como uma epifania ele nesse instante soube que aquela ali era uma mulher com quem podia vir a passar muitos e bons momentos, tomando mais tempo e espaço do que aquele que é habitual uma mulher ocupar na vida dele. Esta sintonia em vez de o libertar, deixou-o pouco à vontade. Os olhos marejaram-lhe de lágrimas e o Grunho não é homem que goste de surpresas. Principalmente deste tipo. – Eu não podia estar mais feliz. Aqui, na minha cidade preferida e na companhia do meu lindo poeta maldito… - piscou-lhe o olho e sorriu - sinto-me mais normal quando estou contigo, tornas tudo muito mais simples e isso é só aquilo que eu nunca tive na vida. A tua maneira, esse ar de gozo que pões em tudo o que dizes e fazes e que nunca deixa vislumbrar se estás a falar a sério ou a brincar, o teu calão, o Fado. E daqui a uns dias vais voltar para o teu estranho e encantador mundo. Vais ser feliz e fazer alguém feliz. – O Grunho empertigou-se no assento e inspirou muito longa e profundamente. Recompôs-se – Os meus casos com nunca terminam mal nem bem, simplesmente acabam. Eu não sou apaixonável, namorável e ainda menos casável. Sou assim, mas a culpa não é minha, é da minha mãe que devia ter fechado as perninhas em vez de as ter aberto. Enfim, tem de aceitar na sua linda cabecinha aquilo que o seu coração ja sabe, e o que ele sabe é que eu não era o homem indicado para si. Merece muito melhor do que este falhado. Não fique desanimada com isso. Eu sou o que menos importa. E recuso-me a aceitar falar de um livro que pode estar no último capitulo e nas últimas páginas mas que ainda não vai ser fechado. Não quero – levantou-se - Tenho que sair, preciso ir fumar um cigarro. E também já perdi a fome que tinha - Abraçaram-se durante alguns segundos. - Let´s go por aí abaixo? 

Foram logo para casa dela, no carro ouviram Dead Can Dance pelo caminho. O Grunho nunca tinha estado tanto tempo em silêncio na companhia de uma mulher. Chovia agora a bom ritmo quando chegaram. - Embora! Vamo-nos esconder das luzes! – soltou ela antes de lhe pegar na mão e deitarem a correr até ao portão da casa de tijolos à vista. Foi uma das suas melhores noites de amor e depois dormiram até de manhã. Despertaram com a luz que entrava generosa pelo quarto dentro. – Vês, hoje pôs-se um dia bonito! – O Grunho, que já estava acordado há muito antes dela ainda demorou a responder - Hoje não há sol que me aqueça. - E mudou de posição, fazendo-se rolar para o lado da parede.