quinta-feira, 26 de novembro de 2015

DENTES DE MARFIM.



O dia amanhecera solarengo e a prometer temperaturas um pouco mais quentes do que aquelas a que Novembro vinha habituando. O corpo do Grunho, habitualmente dado àquela dormência agradável que se experimenta na fase do pós-sono, tinha reagido cedo aos primeiros sinais de claridade. Encontrava-se em casa da Paz, a vizinha, a amiga de infância, a colega de turma, a primeira das suas namoradas e aquela que continuava a sentir até hoje uma paixão verdadeiramente acelapada por ele. Nos últimos tempos, ao ver o Grunho desesperado por falta de emprego, chegava a tentar oferecer-lhe praticamente todo o dinheiro de uma noite mas que o Grunho recusou sempre, por nunca se querer aproveitar. Mesmo rabanceiro, chulice daquela, da autêntica, era coisa que ele não gostava nem queria para ele, apesar das propostas tentadoras de muitas raparigas que gostariam de trabalhar para si, de contar com a sua protecção e talvez até amor. É certo que o Grunho tinha nascido com uma natural inclinação para a preguiça, mas o seu orgulho varonil e a adoracão que tinha por mulheres jamais o permitiriam enveredar pelo vil proxenetismo, isto apesar da opinião contrária dos seus amigos e conhecidos mais viciosos. Na ideia da Paz ela era a sua mulher e ele era o homem dela. O Grunho só por pena e não por vaidade deixava-a pensar que era assim, pois se a pobre rapariga parecia que pairava quando estava ao pé de si com tanto orgulho e felicidade misturados. Quando se pôs a pé foi logo fumar, todo nu, para a janela do quarto e por lá se deixou estar debruçado na janela de rés-do-chão com as duas portadas escancaradas, tossindo e coçando-se. Ainda tinha ficado a ver a Paz desaparecer no fim da rua e ficou só a contemplar o vai-vém das pessoas que áquela hora passam, a maioria em direcção ao trabalho, embalado na ressonância de cada nota proveniente da rua até formar um conjunto de sons que misturados uns com os outros se ia ampliando até se tornarem indistinguiveis. Deste marasmo o Grunho foi trazido de volta pelo Fusca, sempre apressado e a falar sozinho, parou e começou a gesticular tentando sobrepor a voz fininha à do elétrico que passava – ´Tás a ouvir? Abre os olhos camano, já é dia! – o Grunho sorridente, esticou o braço para dar “cinco” ao outro. – Orientas aí um cigarrinho ou não? Mas tu agoras passas aqui a vida? – perguntou cá de baixo, pousando os sacos cheios de hortaliça que trazia – Olha o Fusquinha…Não te preocupes com isso, que aqui no ninho do amor é que eu estou bem! Ontem fui para a cama às quatro da tarde mas não foi para dormir… - o Grunho esticou um cigarro ao amigo e chegou-lhe o lume do isqueiro – Fodasse pá, que até as putas te dão baldas! Eu é que não tenho essa sorte! A mim ficam-me caras como a merda! – O Grunho sorriu - Sabes, puto, não é fadista quem quer mas sim quem nasceu fadista! E queres saber outra, olha, quem nasceu para lagartixa nunca chega a jacaré! – E começou a rir muito satisfeiro com os gracejos. O moço de recados a fumar furiosamente o seu cigarro fez primeiro sinal que sim com a cabeça e a seguir fez sinal que não – Pois, pá, quem pode, pode, quem não pode fica a ver!…E conta lá então, já andas a bulir? – O Grunho, abrindo muito os braços a espreguiçar-se – Já…Trabalho com o Besuntas na firma do pai dele. Mas não é sempre, é quando aparece! – Eu sei, andas lá mais eles nas mudanças… Boa, pá, boa... Olha, dá cumprimentos meus lá à tua mãe, pá! - E voltando a pegar nos sacões, desapareceu, retomando a sua habitual velocidade de ponta. O Grunho continuou apoiado no peitoril da janela. A rua da Paz não distava muito de uma escola privada e daquele ponto privilegiado o Grunho costumava entreter-se a provocar os grupos de adolescentes que muitas vezes também se deixavam impressionar por ele. No passeio do outro lado da estrada passaram duas que já vinham aos cochichos. A mais descarada, olhando para o Grunho, falou propositadamente mais alto para que ele ouvisse – Ai…até dói! – o Grunho, muito lesto respondeu – Dói nada, filha! Vem cá que eu não te aleijo, já dizia o poeta Aleixo! Vem que eu ainda não tomei o pequeno-almoço… Ai isso que vocês têm entre as pernas!ui...são os joelhos, não é? Pois, são bonitos! – uma outra atrás, mais alta que as outras, olhos fitos no chão, abraçada aos livros – Bom dia, pãozinho…comia-te sem manteiga e tudo, sabes disso não é? E essas mamocas redondinhas e durinhas também…Isso só lá vai à dentada! Espera, espera… não vás ainda, desculpa, não queria dizer isso, deixa-me tocar-te no coração, mia riccaddona, dá-me um xôxo vá lá! – As próximas quatro sorriam ao ouvi-lo, porém não se atreveram a dirigir-lhe o olhar – Ó mãe dá-me água!…Que bando de passarinhas, este! Até fico paneleiro dos olhos! Venham cá que à dúzia é mais barato! – o estado de deleite do Grunho só foi interrompido pela passagem do Peças no sentido contrário, que disse entredentes – Bom dia. Como agora já trabalhas, vê lá se me pagas os 30 paus que me deves - O Grunho, que até ali tinha estado de braços cruzados e com muito boa disposição, empertigou-se e levantou o tom enrouquecido da sua voz - Ouve lá ó cabeça de boi, eu não te paguei sempre o que devia? Quando receber a surda eu dou-te o guito, qual é o problema? Tu também deves ter nascido de uma punheta, de certeza! Caralho…isso, isso, vai lá pela sombra que a merda ao sol derrete,´tas a ouvir, mano? E escarrou sonoramente para a rua antes de voltar para dentro do quarto - ...é que agora fiquei cá c´uma vontade de descansar o cotovelo na tua testa, meu! – berrou ainda, assomando de súbito à janela, visivelmente transtornado, na direcção do outro, que por sinal já se tinha pisgado. – Opá…Tenho é de ir tomar café, antes que mande uma trolitada em alguém e ainda vá preso por massacre! – Deitou fora o cigarro inacabado e recolheu-se.


O Grunho tinha a última consulta dali por duas horas. Era na clínica da dentista que ele tinha engatado no Verão, uma ricaça que gostava de o mimar, e por isso, material a que o Grunho se tinha agarrado com unhas e os seus agora renovados dentes, pois segundo o próprio, gajas assim não surgem fácilmente no mercado. Saiu de casa da Paz vestido por Armani, calçado por Dolce & Gabanna e cachecol Burberry all made in feira do relógio, para ir engraxar os sapatos ao adro de S. Domingos. – Ah, os sapatos engraxados fazem maravilhas! – Pôs-se de pé a mirar os sapatos que pôs a rodar sobre os calcanhares - Fique lá com o troco Sr. Julião que eu hoje ´tou cheio d´a pressa! – Deu um salto ali às Portas de Santo Antão para ir à tasca do Acácio buscar tabaco e comer o pastel de bacalhau retardado. Saiu de lá meia hora depois, por conta das bazófias trocadas com os outros e mais três ginjas atiradas abaixo, despesa da casa. Com um palito nos dentes, ajeitou o cachené e ainda a alisar a espessa amálgama de fios pretos na cabeça, lá seguiu viagem. Em cada montra e por cada carro por onde passava o Grunho parava e revia a bonita dentição, completa e branca como marfim. Há alguns anos que a falta de dentes era o único senão que o desfeava quando ria, e isso embora não o atormentasse nem tãopouco lhe impedisse as gargalhadas alarves, era coisa séria e preocupava-o, afinal, ele sabia-o bem, ainda era um traço de rapaz e não queria igualar-se aos outros fadistas de má pinta com quem se dava só à pala da cremalheira desbaratada. Normalmente só está assim de noite, mas naquele momento, sentia-se francamente bem disposto, em forma, animado e muito positivo. Um rei em Lisboa. Antes de descer a escadaria do metro olhou para o seu castelo e inspirou a fumaça das castanhas assadas frente à Casa da Sorte. Hoje era a vez dele recompensar a Tiradentes.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O FADO DO GRUNHO.

Fui de viela em viela 
Numa delas, dei com ela 
E quedei-me enfeitiçado... 
Sob a luz dum candeeiro, 
S'tava ali o fado inteiro, 
Pois toda ela era fado.

Alfredo Marceneiro



Naquele dia as coisas definitivamente não correram bem ao Grunho. Por ter andado na moinice toda a noite de sexta-feira deitou-se com o pifo e dez horas depois acordou mal disposto. Antes de sair de casa disparado ainda gritou com a mãe deixando a pobre mulher num pranto que se ouvia da rua. De vestir o blusão de pele estalada ainda se lembrou mas o mesmo não aconteceu com os cigarros. Estacou no Beco do Belo a revistar os bolsos mas além da magra carteira só encontrou o pente e o corta-unhas. Afinal até o telemóvel tinha ficado no quarto. Não ia voltar a casa. Se bem que já estivesse arrependido pelos seus maus modos era insuportável deparar-se com a cena da Madalena arrependida que a sua mãe tantas e tantas vezes já protagonizara. Arregaçou as mangas do casaco até ao cotovelo e ainda que agoniado desceu resoluto a calçada até à Rua do Jardim do Tabaco, no seu habitual gingar de pernas desengonçado. Já era quase horas de jantar e como à noite tinha de ir cantar o fado à Toca do Coelho encaminhou-se sem pressa para lá. Haviam de lhe arranjar uma pinga para beber e mais um pão com chouriço, que naturalmente não ia cantar de estômago encolhido.

Na cozinha, já com a boina que o restaurante lhe emprestava e que fazia as delícias dos turistas estrangeiros para tirar selfies, inclinou e bebeu de um só trago meia taça de vinho para aclarar a garganta. Deu os primeiros lamirés com o olhar concentrado nos traseiros das cozinheiras enquanto fazia desaparecer a colher de sopa dentro da boca. O chefe de mesa veio chamá-lo para entrar na sala e as mulheres ainda levaram um raspanete por estarem a olhar para um dos fadistas por detrás do ombro em vez de se despacharem a empratar o bacalhau. Na sala pouco iluminada cantou três fados acompanhado à viola mas durante a pausa uma simples discussão com os guitarristas a ver com o tom do último tema levou à questão da métrica do fado alexandrino, em como era interpretado o tema original, e, sem saber bem como nem porquê, vieram à baila os fados de Amália Rodrigues, talvez o único ódio irracional do Grunho, em matéria de fado. Nas mesas, alguém ao ouvir-lhes pronunciar o nome da grande diva do fado começou a pedir que ele cantasse algum tema amaliano. A este ponto, vendo o Grunho cada vez mais enervado e a já a discutir com os próprios clientes em tom de voz cada vez mais ameaçador, o Sr. Coelho, que adivinhava o desastre iminente, pediu entre sorrisos nervosos e umas palmadinhas nos ombros que ele fosse dar uma volta, que para esta noite já havia fadistas em número suficiente e até puxou de uma nota que enfiou no bolso das calças do Grunho. Este, voltava à carga, brandindo com os braços entre gritos de que se é homem é evidente que não vai cantar fados de mulher e depois os seus fatais comentários depreciativos em relação à Senhora Dona Amália Rodrigues determinaram a confusão geral de cadeiras arrastadas, tombadas, e arremessadas, vidros de copos partidos e muita louça no chão, resultado da força conjunta dos empregados da casa e alguns clientes galifões já entornados que o Grunho rapidamente atingia a murros, pontapés e cabeçadas para desespero dos donos e pânico dos turistas - maioritariamente espanhóis - que ali se encontravam. O resultado foi que ainda não era meia-noite e a debandada de clientes tinha sido geral, um prejuízo calamitoso para o patrão que, a somar à destruição da sala, a maioria do consumo daqueles jantares ainda não tinha sido paga. Para o irascível Grunho era menos uma casa de fado daquelas onde ainda lhe era concedida a hipótese de cantar e assim tirar um arrego para para o tabaco e outro para dar à mãe, fora as gorgetas, o jantar oferecido e as camones que ao fim da noite sempre fisgava. Antes de sair pegou no velho blusão e passou a toda a mecha por entre dois bófias que corriam para o local de cacetete na mão abrindo caminho por entre as pessoas que circulavam nos dois sentidos da estreitíssima viela. O Grunho foi-se sentar no chão entre dois carros estacionados, mãos na cabeça, olhos vermelhos alagados em lágrimas. Uma rapariga tinha vindo atrás de si desde o restaurante. Era ainda mais alta que ele, com um vestido preto comprido e um lenço vermelho na cabeça e sapatos da mesma cor. Por pouco não apanhou com o escarro de sangue que o Grunho atirou para o empedrado no momento em que ela se agachou à frente dele. - Olá...olha, tu estás bem? Deixa-me ver – o Grunho levantou a cabeça mantendo os cotovelos sobre os joelhos. Escorria-lhe um fio de sangue por um dos cantos da boca. Ainda ofegante, e mesmo se quisesse, sem poder falar, fitou-a e seguiu com curiosidade o seu gesto ao retirar da bolsa uns lenços de papel que carregou durante alguns segundos contra os lábios dele - Jeitoso, tu cantas lindamente mas tens mau feitio… - ele inspirou profundamente, e já com a respiração quase normalizada, endireitou-se – Obrigado, não me dói nada. É que ´tou a ficar queimado, pá. Qualquer dia acabam-se os biscates do fado e fico agarrado ao pau, é o que é! A sua graça, qual é? - A rapariga, levantou-se, - Chamo-me Mónica. Mas olha lá, tu não podes ser só fadista, não tens outra profissão, um trabalho? – o Grunho encolheu os ombros - Tenho mais ou menos. Às vezes sim, outras vezes não… Por acaso agora trabalho a fazer mudanças - Mónica olhou rapidamente o grande relógio de pulso dela - Levanta-te rapaz, devias ir beber um bocado de água, anda. – Água? Isso mata, caralho… - o Grunho também se levantou sem não deixar de olhar directamente para o rosto oval, de feições levemente orientais de Mónica. O telemóvel dela começou a tocar - As minhas amigas, devem estar à minha procura. Estávamos todas no restaurante - O Grunho juntou as palmas das mãos em gesto de clemência - Oh, não te vás já daqui, mocita… Não me deixes sozinho que eu estou a precisar de companhia e sofro de solidão. Vamos então beber um copo? – Meteu ao bolso as ganfias e confirmou a presença da nota – Vamos?… - Ela pareceu durante alguns segundos algo contrariada mas logo começou a digitar uma mensagem de texto, ao mesmo tempo que sorria.


Passaram por uma loja de conveniência onde compraram uma pack de meia dúzia de cerveja em lata e a seguir foram caminhar ao acaso. Muitas foram as investidas do Grunho para alcançar com os seus os lábios finos de Mónica que sempre virava a cara para o lado. Apesar das negas ele não a largou e abraçou-a pela parte de dentro do casaco quando ela se queixou do frio. Ao dar com os ossos no Cais do Sodré notaram o quanto se tinham distanciado do ponto de partida. Passava das três da manhã. Áquela hora ou apanhavam taxi para ir a alguma discoteca, ou alugavam quarto ou então separavam-se ali mesmo. – Apesar de seres um bocadinho…hum, bruto, és um gandim simpático…Gostei de te conhecer e olha, se aceitares, arranjo-te um restaurante onde possas ir sempre cantar fado. Os meus pais têm um, amanhã falo com eles. – O Grunho, manifestamente alegre, deu uma série de grandes assobios que rasgaram o silêncio da noite – Ah, eu não sou só bonito, também sou sortudo! – e de seguida agarrando-a com as mãos na face para que não fugisse, beijou-a. Mónica fechou os olhos e desta vez não fugiu nem resistiu. – Não vais ter que cantar Amália Rodrigues, se não quiseres – riu com vontade. Um taxi que ia a passar abrandou ao sinal dela. Abriu a porta – O teu número de telemóvel…? – o Grunho retirou da carteira uma pequena folha dobrada e entregou-lha – Toma. Nunca decorei o número mas acho que é o 91696969…se não for passa a ser. Agora toca-te para dentro do carro, vá, deixa-me só, com a minha dor! – Mónica pegou no pedaço de papel e entrou no táxi sem fechar a porta. Deslizou para o outro lado. O Grunho de um só pulo voou para dento da viatura.