sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O FADO DO GRUNHO.

Fui de viela em viela 
Numa delas, dei com ela 
E quedei-me enfeitiçado... 
Sob a luz dum candeeiro, 
S'tava ali o fado inteiro, 
Pois toda ela era fado.

Alfredo Marceneiro



Naquele dia as coisas definitivamente não correram bem ao Grunho. Por ter andado na moinice toda a noite de sexta-feira deitou-se com o pifo e dez horas depois acordou mal disposto. Antes de sair de casa disparado ainda gritou com a mãe deixando a pobre mulher num pranto que se ouvia da rua. De vestir o blusão de pele estalada ainda se lembrou mas o mesmo não aconteceu com os cigarros. Estacou no Beco do Belo a revistar os bolsos mas além da magra carteira só encontrou o pente e o corta-unhas. Afinal até o telemóvel tinha ficado no quarto. Não ia voltar a casa. Se bem que já estivesse arrependido pelos seus maus modos era insuportável deparar-se com a cena da Madalena arrependida que a sua mãe tantas e tantas vezes já protagonizara. Arregaçou as mangas do casaco até ao cotovelo e ainda que agoniado desceu resoluto a calçada até à Rua do Jardim do Tabaco, no seu habitual gingar de pernas desengonçado. Já era quase horas de jantar e como à noite tinha de ir cantar o fado à Toca do Coelho encaminhou-se sem pressa para lá. Haviam de lhe arranjar uma pinga para beber e mais um pão com chouriço, que naturalmente não ia cantar de estômago encolhido.

Na cozinha, já com a boina que o restaurante lhe emprestava e que fazia as delícias dos turistas estrangeiros para tirar selfies, inclinou e bebeu de um só trago meia taça de vinho para aclarar a garganta. Deu os primeiros lamirés com o olhar concentrado nos traseiros das cozinheiras enquanto fazia desaparecer a colher de sopa dentro da boca. O chefe de mesa veio chamá-lo para entrar na sala e as mulheres ainda levaram um raspanete por estarem a olhar para um dos fadistas por detrás do ombro em vez de se despacharem a empratar o bacalhau. Na sala pouco iluminada cantou três fados acompanhado à viola mas durante a pausa uma simples discussão com os guitarristas a ver com o tom do último tema levou à questão da métrica do fado alexandrino, em como era interpretado o tema original, e, sem saber bem como nem porquê, vieram à baila os fados de Amália Rodrigues, talvez o único ódio irracional do Grunho, em matéria de fado. Nas mesas, alguém ao ouvir-lhes pronunciar o nome da grande diva do fado começou a pedir que ele cantasse algum tema amaliano. A este ponto, vendo o Grunho cada vez mais enervado e a já a discutir com os próprios clientes em tom de voz cada vez mais ameaçador, o Sr. Coelho, que adivinhava o desastre iminente, pediu entre sorrisos nervosos e umas palmadinhas nos ombros que ele fosse dar uma volta, que para esta noite já havia fadistas em número suficiente e até puxou de uma nota que enfiou no bolso das calças do Grunho. Este, voltava à carga, brandindo com os braços entre gritos de que se é homem é evidente que não vai cantar fados de mulher e depois os seus fatais comentários depreciativos em relação à Senhora Dona Amália Rodrigues determinaram a confusão geral de cadeiras arrastadas, tombadas, e arremessadas, vidros de copos partidos e muita louça no chão, resultado da força conjunta dos empregados da casa e alguns clientes galifões já entornados que o Grunho rapidamente atingia a murros, pontapés e cabeçadas para desespero dos donos e pânico dos turistas - maioritariamente espanhóis - que ali se encontravam. O resultado foi que ainda não era meia-noite e a debandada de clientes tinha sido geral, um prejuízo calamitoso para o patrão que, a somar à destruição da sala, a maioria do consumo daqueles jantares ainda não tinha sido paga. Para o irascível Grunho era menos uma casa de fado daquelas onde ainda lhe era concedida a hipótese de cantar e assim tirar um arrego para para o tabaco e outro para dar à mãe, fora as gorgetas, o jantar oferecido e as camones que ao fim da noite sempre fisgava. Antes de sair pegou no velho blusão e passou a toda a mecha por entre dois bófias que corriam para o local de cacetete na mão abrindo caminho por entre as pessoas que circulavam nos dois sentidos da estreitíssima viela. O Grunho foi-se sentar no chão entre dois carros estacionados, mãos na cabeça, olhos vermelhos alagados em lágrimas. Uma rapariga tinha vindo atrás de si desde o restaurante. Era ainda mais alta que ele, com um vestido preto comprido e um lenço vermelho na cabeça e sapatos da mesma cor. Por pouco não apanhou com o escarro de sangue que o Grunho atirou para o empedrado no momento em que ela se agachou à frente dele. - Olá...olha, tu estás bem? Deixa-me ver – o Grunho levantou a cabeça mantendo os cotovelos sobre os joelhos. Escorria-lhe um fio de sangue por um dos cantos da boca. Ainda ofegante, e mesmo se quisesse, sem poder falar, fitou-a e seguiu com curiosidade o seu gesto ao retirar da bolsa uns lenços de papel que carregou durante alguns segundos contra os lábios dele - Jeitoso, tu cantas lindamente mas tens mau feitio… - ele inspirou profundamente, e já com a respiração quase normalizada, endireitou-se – Obrigado, não me dói nada. É que ´tou a ficar queimado, pá. Qualquer dia acabam-se os biscates do fado e fico agarrado ao pau, é o que é! A sua graça, qual é? - A rapariga, levantou-se, - Chamo-me Mónica. Mas olha lá, tu não podes ser só fadista, não tens outra profissão, um trabalho? – o Grunho encolheu os ombros - Tenho mais ou menos. Às vezes sim, outras vezes não… Por acaso agora trabalho a fazer mudanças - Mónica olhou rapidamente o grande relógio de pulso dela - Levanta-te rapaz, devias ir beber um bocado de água, anda. – Água? Isso mata, caralho… - o Grunho também se levantou sem não deixar de olhar directamente para o rosto oval, de feições levemente orientais de Mónica. O telemóvel dela começou a tocar - As minhas amigas, devem estar à minha procura. Estávamos todas no restaurante - O Grunho juntou as palmas das mãos em gesto de clemência - Oh, não te vás já daqui, mocita… Não me deixes sozinho que eu estou a precisar de companhia e sofro de solidão. Vamos então beber um copo? – Meteu ao bolso as ganfias e confirmou a presença da nota – Vamos?… - Ela pareceu durante alguns segundos algo contrariada mas logo começou a digitar uma mensagem de texto, ao mesmo tempo que sorria.


Passaram por uma loja de conveniência onde compraram uma pack de meia dúzia de cerveja em lata e a seguir foram caminhar ao acaso. Muitas foram as investidas do Grunho para alcançar com os seus os lábios finos de Mónica que sempre virava a cara para o lado. Apesar das negas ele não a largou e abraçou-a pela parte de dentro do casaco quando ela se queixou do frio. Ao dar com os ossos no Cais do Sodré notaram o quanto se tinham distanciado do ponto de partida. Passava das três da manhã. Áquela hora ou apanhavam taxi para ir a alguma discoteca, ou alugavam quarto ou então separavam-se ali mesmo. – Apesar de seres um bocadinho…hum, bruto, és um gandim simpático…Gostei de te conhecer e olha, se aceitares, arranjo-te um restaurante onde possas ir sempre cantar fado. Os meus pais têm um, amanhã falo com eles. – O Grunho, manifestamente alegre, deu uma série de grandes assobios que rasgaram o silêncio da noite – Ah, eu não sou só bonito, também sou sortudo! – e de seguida agarrando-a com as mãos na face para que não fugisse, beijou-a. Mónica fechou os olhos e desta vez não fugiu nem resistiu. – Não vais ter que cantar Amália Rodrigues, se não quiseres – riu com vontade. Um taxi que ia a passar abrandou ao sinal dela. Abriu a porta – O teu número de telemóvel…? – o Grunho retirou da carteira uma pequena folha dobrada e entregou-lha – Toma. Nunca decorei o número mas acho que é o 91696969…se não for passa a ser. Agora toca-te para dentro do carro, vá, deixa-me só, com a minha dor! – Mónica pegou no pedaço de papel e entrou no táxi sem fechar a porta. Deslizou para o outro lado. O Grunho de um só pulo voou para dento da viatura. 

























4 comentários:

  1. Respostas
    1. Se tivesse tanta lata assim abria um ferro-velho ou daqueles antiquarios pirosos prás tias passarem o tempo!! Obrigado, Dee

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