sexta-feira, 17 de março de 2017

ACÇÃO.



Mal lhe abriu a porta, o Grunho pregou uma tolada que fez o carocho cair-lhe aos pés. Lá dentro mais dois manos que ouviam música africana sentados num velho sofá apanharam com o taco de basebol no corpanzil e tão mal tratados ficaram das canetas que atravessaram a porta de gatas e a rastejar. Lá fora, o Besuntas, que tinha ficado de atalaia, encarregou-se de ir distribuindo pontapés entre os dois, que o primeiro já estava sedado. Não demorou cinco minutos desde que entrou até ter saído da pequena divisão. Lá dentro, revolveu tudo à procura da chave da aposta do Besuntas, malas de dinheiro, ou alguma coisa de valor. Quando reapareceu lá de dentro da barraca em chamas trouxe tudo o que pode trazer consigo. Lá vinha o telemóvel e a carteira do Besuntas, fios, pulseiras e anéis de ouro separados por género em sacos de plástico e ainda alguns maços de notas. Voltou à soleira da porta para puxar por uma perna o carocho adormecido antes que este começasse também a arder. - Meus meninos, se eu tivesse paciência arranjava uma cana de pesca…  O Besuntas voltou a pontapear as costas dos dois homens que até o Grunho ficou surpreendido. - Toma! Vira-milho, seus cabrões! e vai ser assim até que me digam onde está a massa! - gritou o Besuntas para os três desgraçados que muito juntos, choravam como crianças por se sentirem à beira da morte iminente. Tinha acabado de puxar para o chão o primeiro, que ao dar acordo de si tentou pisgar-se - Encontraste a chave do meu prémio, ou não? Vem lá a bófia e os bombeiros também não tardam aí! - O Grunho estava logo ali, encostado à carrinha. Ofegante, tentava contar o monte compacto de notas seguro por quatro elásticos sem o desmanchar. - Calma…isto aqui é muita pasta mas um milhão de paus é que não é! Pergunta a esses três santinhos onde está o resto das notas ou então o recibo do nosso euromilhões…- Os outros, desesperados, começaram a retorcer-se para se afastarem da barraca em chamas e iam jurando pela saúde dos seus filhos que não sabiam nada do que ele estava a falar. -  Bom, nesse caso, passarinhos fritos, para toda a gente! - Os rapazes ou não sabiam de nada ou não estavam com grande vontade de dar com a língua nos dentes, mas áquela hora isso também já não valia a pena avaliar porque o Grunho já estava com os olhos esgazeados quando partiu a correr para eles.

Já tinha o nome do Gandim, o que ele fazia e onde morava. Tratava-se de um gajo que o Grunho conhecera no Hospital de Santa Maria. Estava lá para fazer um raio-x naquele dia em que ele ajudou a segurança e depois a políca a expulsar da cave a família de ciganos que clandestinamente lá vivia há quase um ano. Ele e o Gandim tinham juntado forças e unidos pela bravura demonstrada tornaram-se amigos até o Gandim ter ido passar um Verão no Alentejo e ter voltado de lá a cantar modinhas regionais. Ainda viram juntos uns filmes de Kung-Fu da enorme colecção do Gandim mas depois disso nunca mais se deram. Ao que parece, a família dele tinha-se mudado. Neste momento, a mera suposição de que o Gandim começasse a desbaratar o prémio era o combustível para a sua fúria. Na manhã seguinte, conforme já tinha combinado com a vizinha muito amiga de sua mãe - principalmente por causa desta - todos os domingos de manhã enquanto a sua dona ia à missa, o Grunho tomava-lhe conta da Fanora, a cadela rafeira obesa que se costumava peidar forte e feio. - Fodei-vos! A Fanora não é carne para o vosso espeto! - com a cadela ao colo tentava enxutar ao pontapé a alcateia de quatro cães que ladravam e saltavam para chegar ao rechonchudo animal - Seus animais! Olha agora…Que tourada! Isto só comigo! - Um grupo de raparigas, estudantes a caminho da escola, algumas delas conhecidas do Grunho riam-se ao ver o Grunho atascado mais a cadela do cio em altas. Ele passava a mão pelo cabelo desde a testa até à nuca, soprava em desespero ao mesmo tempo que rodava entre os cães como se os toureasse - Então as meninas riem-se do bom samaritano? Que velhacas! - Uma parte do grupo, bastante sorridentes fazia vez para ir com toda a naturalidade cumprimentá-lo com dois beijos na cara. As restantes ficaram a olhar, talvez com medo dos cães - Venham cá dar um beijinho, não sejam tímidas! Eu nem sequer mordo!Só dou beijinhos e outras coisas maravilhosas que faço com a boca! Podem vir à vontadinha, venham descobrir o que isso é, se quiserem! Comigo vale tudo menos arrancar olhos! - Ao ver que as duas raparigas a quem se dirigia retomavam a sua marcha escolar, o Grunho deitou as últimas résteas do seu charme - Que livros são esses que levam aí? Se vocês gostam de ler, eu dou-vos a “leiteratura”! Jorra bem quentinha e é de qualidade nacional! Ai que isto até doi cá no coração! Nunca mais fazem os dezoito aninhos, pá! - Nisto, o Besuntas tinha-se aproximado, mantendo-se a comer um gelado na mão livre enquanto a outra agarrava o ferrugento corrimão das escadas. - Fodasse consegues ser mesmo porco, mas olha dou-te razão, estas miúdas da escola que só cheiram a leite não te largam mesmo com essas nojices que tu dizes, por isso tu é que estás bem!…- O Grunho já tinha corrido com todos os cães e agora era ávidamente lambido na cara pela pequena cadela nos seus braços - Meu, o que é que tu queres, não se pode ser bonito! Olha para isto!

Ao sair de casa, o Grunho, pele muito tostada pelo sol, cabelo muito preto penteado para trás, tanto podia ser confundido por um cigano como por um italiano do sul. Com o casaco ganga que comprou nos saldos sem experimentar e que portanto ficava-lhe demasiado justo ao ponto de não conseguir apertar os botões. A seguir passou na Mercearia da ti Alice para se borrifar com desodorizante. Sabia que era uma questão de tempo até reaver o prémio do jogo, já sabia onde procurar. De momento poder-se-ia dizer que já estava melhor do que há vinte e quatro horas atrás pois que agora tinha em suas posses alguns milhares de contos. Ficou de se encontrar com a Dona no seu novo apartamento em Campo de Ourique e pensava por quanto tempo mais valeria a pena continuar a gastar dinheiro em corridas de taxi para ir ter com ela. Já lá ia um mês e meio ou coisa assim, o que para ele já se tornava intimidante. Era bonita? Sim, como quase todas. Boa na cama? Claro, igual a qualquer uma. Era uma lady? Sim, era. Talvez por isso tivesse qualquer coisa de puta fina. Ao pé dela, as outras são apenas galdérias. Mas que se se lixe, esta também não haveria de ser a última, depois do pirafo desta noite estava tudo decidido. Ela já o compreendia demasiado bem. Já o estava a conhecer íntimamente, e como sempre quando isso acontece o Grunho sai de fininho. Não as quer agarradas ao pescoço muito tempo que o mar está carregado de peixe. O taxi deixou-o em frente do prédio antigo de fachada verde-esmeralda. Subiu a estreita escadaria de madeira até ao primeiro patamar. Sempre gostou do interior destes prédios que pararam no tempo. Desde o agradável cheiro que se desprende dos degraus, o ranger do soalho, o patusco elevador miniatura de grade retráctil, a parca iluminação das escadas, tudo fazia-o sentir-se aprisionado ao charme de Lisboa de uma forma voluntária e com bastante prazer. - Vieste? Cheguei a pensar que já não vinhas…como não confirmaste… - a Dona tinha vindo abrir a porta com um roupão de seda por cima do seu corpo possívelmente desprovido de roupa interior, numa das mãos, um balão de vidro com vinho tinto - Mas vim, tinha que vir, nem que fosse para me despedir de si. - O Grunho deu-lhe uma palmada no rabo e uma pequena dentada no pescoço - Ah, que bom, isso significa que gostas um niquinho de mim? Que não vieste cá apenas para te despedires de mim?  O Grunho despiu o casaco e procurou o maço de tabaco nos seus bolsos  - Claro que gosto, estou aqui, não estou? Se vim é porque eu quero. Não me limpo a qualquer guardanapo! - Ela fechou a porta com uma volta na chave - Desculpa?…Acabaste de me chamar guardanapo? O Grunho, já estava sentado no enorme sofá italiano de pele preta. - Guardanapo mas de pano! Seda…seda purinha! Ah, tanta conversa…aquilo que aqui interessa saber é que tu és a chama, eu sou o vento e que juntos vamos puxar fogo a Lisboa esta noite! - Bateu em ambas as pernas com as mãos, apelando a que ela se sentasse - e depois disso até tenho umas novidades que me deixam contentinho da vida. - a Dona sentou-se ao colo dele, acariciando-o da orelha até ao queixo, em movimentos lentos e repetitivos - Que malandro, não vales a comida que comes! Tanto homem que me deseja e eu só te quero a ti meu vadio…Vá, conta-me já essas novidades, sempre conseguiste saber quem é que roubou o euromilhões do teu amigo? - O Grunho fá-la balançar com as pernas, sem desviar o olhar da opulência daquela sala, percorrendo o olhar pelos móveis, candeeiros de pé, a mesa com o vidro cheio de curvas, os quadros modernos. Tudo ali fazia contraste com a antiguidade daquele prédio secular.- Já sei de quem partiu a ideia e por acaso até conheço o animal. Esse já tem a missa encomendada, portanto daqui em diante é safoda, meteram-se com o Besuntas, meteram-se comigo! -  e enfiou finalmente o cigarro no beiço, sem o acender. A Dona entretanto começara a desapertar-lhe os botões da camisa - Sabes, querido, quando foram as mudanças das minhas coisas aqui para esta casa o teu amigo descaiu-se a dizer que o tipo é perigoso, que anda a rebentar caixas de multibanco por aí, entre outras coisas… - O Grunho cobriu a cara com as mãos, - Só pode ser isso, o Besuntas ficou ché-ché de tanto bater canholas! Então ele anda a contar essa merda? Sim, é verdade eu conheço o gajo há long time mas esteve desaparecido e só há pouco tempo descobri que o gajo é tão bom a estoirar caixotes multibanco como eu sou a estoirar dinheiro. Além disso ainda continua com a mania de que é atrevido e que bate em todos. Só tenho pena de não o ter apanhado lá na barraca que o punha a grelhar na chapa! Mas isto não são favas contadinhas, das duas, uma, ou entro à bruta, que é mesmo ao meu estilo, ou vou ter de conseguir ganhar a confiança dele para me enfiar no seu círculo de amiguinhos, poder manjar o esquema, entendes? Depois tau! meto o meu estilo na mesma, que já perdi muito tempo. -  O Grunho tinha enfiado uns dedos na boca dela que os chupava demoradamente - Eu posso tentar ajudar-te, também tenho os meus contactos e soube onde ele pára frequentemente…Vou buscar…tenho ali…o papel…

Na manhã seguinte ao despertar, o Grunho lembrou-se como lhe tinha sabido bem adormecer com ela a massajar-lhe os tomates. Era tarde, o sol aquecia-lhe o corpo sob o lençol. Levantou-se devagar e começou-se a vestir. Embolsou a carteira, onde tinha guardado o papel com uma morada e um número de telemóvel apontados, que a Dona lhe tinha dado. Como um cowboy urbano, ajeitou a boina na cabeça e sacudiu o pó do casaco, puxou as calças para cima e voltou a voltou a apertar o cinto, um furo ao lado. Nunca tinha tido tempo para observar a casa, que à luz do dia parecia ainda maior. Passou rapidamente a vista pelas enormes divisões - Caraças, um cavalo como estes não passa duas vezes à nossa porta… - ao espreitar a cozinha ultramoderna fez a empregada de limpeza que comia o caldo sentada à mesa, soltar um gritinho de susto. Acenou-lhe com a cabeça, sorrindo e saiu. Só se lembrou de mijar quando já estava na rua.

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